A extrema-direita é a principal ameaça à democracia

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A imprensa mainstream (mundial ou local) ignorou o facto: no mês passado, quando da tomada de posse do novo presidente da Bolívia, Luís Arce, um grupo de governantes, ex-presidentes e líderes progressistas de vários países da Europa e da América Latina assinou um documento designado "Declaração de La Paz", no qual afirma que "a principal ameaça à democracia e à paz social no século XXI é o golpismo da extrema-direita".

Entre os signatários da declaração, cuja iniciativa coube a Pablo Iglesias, líder do espanhol Podemos, incluem-se, além deste último, o presidente boliviano, já mencionado, e o presidente argentino, Alberto Fernández; os ex-presidentes do Brasil (Dilma Rousseff) e do Equador (Rafael Correia); os antigos chefes de Governo da Espanha (José Luis Zapatero) e da Grécia (Alexis Tsipras); os candidatos à presidência do Chile (Daniel Zadue), Equador (Andrés Arauz), Colômbia (Gustavo Pedro) e Peru (Verónica Mendonza); e, por fim, os políticos europeus Jean Luc Melenchon, líder do França Insubmissa (França) e Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda (Portugal).

O espanhol El País foi o único grande jornal onde li uma referência a este facto, o que se compreende facilmente. Mas o periódico preferiu a futriquice ao jornalismo: focou-se mais no facto de Iglesias ter aproveitado a circunstância de ter acompanhado o monarca espanhol à Bolívia, onde foi assistir à tomada de posse de Luis Arce, para levar a cabo "uma agenda paralela" e menos no conteúdo da declaração. Metade da matéria, pelo menos, foi dedicada a insinuações críticas sobre as relações do líder do Podemos com líderes latino-americanos de esquerda.

O facto é que a "Declaração de La Paz" tem uma importância geral e tendencialmente universal que não deve ser desconhecida ou ignorada. Como escreve Michael Lowy, a extrema-direita está hoje presente, de forma mais ou menos declarada, numa série de países ou mesmo "paraestados", digamos assim, que ele cita num artigo publicado originalmente no International Viewpoint no início deste ano: EUA, Índia, Hungria, Turquia, Itália, Filipinas, Brasil e Daesh ("Estado Islâmico"). Em outros países, diz ele, está representada em governos que não se identificam com essa tendência, mas que dela estão, na realidade, próximos: Rússia, Israel, Japão, Áustria, Polónia, Birmânia, Colômbia, Filipinas e outros.

Alguns dos seguintes traços unem, integral ou parcialmente, esses países: o nacionalismo fundamentalista, o sentimento anti-imigrante, a xenofobia, o racismo, o fanatismo e fundamentalismo religiosos (cujo alvo varia conforme os países), o ultraconservadorismo no plano dos costumes, o autoritarismo e a defesa do recurso à violência policial e militar como única forma de combater o crime e resolver os problemas sociais e, last but not the least, o ódio a qualquer ideologia de esquerda.

O autoritarismo africano tem muitas semelhanças com tais tendências. Comprovam-no vários episódios ocorridos em diferentes países, não apenas de violência, mas xenófobos, racistas e fundamentalistas. De igual modo, explica-o a simpatia de muitos africanos - incluindo jovens que aparentemente lutam pela consolidação da democracia em África - em relação às teses e às teorias da extrema-direita mundial, assim como o seu desalento pela derrota de Trump nas últimas eleições americanas.

Como têm observado vários analistas, a humanidade parece estar a regressar aos anos 30 do século XX. Isso é um aviso claro: precisamos todos de nos mobilizar para impedir a vitória da extrema-direita. O ponto de partida, naturalmente, será procurar entender as causas do crescimento desse movimento, que, teoricamente, vão de certos efeitos perversos da globalização neoliberal (como a "desnacionalização" das indústrias ou a homogeneização cultural brutal que a mesma provoca) à crise económico-financeira de 2008, passando pela onda migratória mundial.

Para já, é imperioso refutar uma confusão elementar, que, na verdade, constitui uma estratégia deliberada para criar uma equivalência forçada entre a extrema-direita e a esquerda "radical": chamar "populismo de direita" à extrema-direita (para diferenciá-lo do "populismo de esquerda"). Essa estratégia é usada sobretudo pelos setores da direita democrática e liberal que, por taticismo ou por causa dos seus interesses económicos e políticos, tende, em determinados momentos, a condescender com a extrema-direita. A verdade, porém, é que os movimentos oriundos da extrema-esquerda que estão hoje nos parlamentos (e até nos governos) de vários países na Europa e na América Latina não têm mais nada de "radical" e estão perfeitamente absorvidos pelo sistema democrático-representativo.

Não podemos, pois, estar equivocados ou distraídos. A derrota de Trump, visto pelos seus próprios integrantes como líder natural da extrema-direita mundial, abalou esse movimento, mas não o extinguiu.

Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.

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