Um marinheiro beija em Nova Iorque em 1945 uma enfermeira desconhecida celebrando a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial e o gesto é imortalizado numa fotografia que fez capa da Life. O luso-americano George Mendonsa, o protagonista, morreu no domingo, aos 95 anos. Um dia depois o debate estava lançado: aquele beijo seria hoje considerado um ato abusivo? "Hoje, esta foto icónica podia ser considerada abuso", escreveu Monica Hesse, colunista do jornal The Washington Post, citando as opiniões que lhe foram chegando via Facebook e Twitter. Acrescenta: houve indignação ao estilo "isto não é o mundo a ficar louco?" e, do outro lado da barricada, perguntas do género "como se atrevem a homenagear este homem?" ou "tirem a estátua"..Depois das redes sociais, a conversa partiu para a rua. Na Florida, uma estátua do famoso beijo foi grafitada com a palavra #MeToo. A pintura, cor-de-rosa, foi "do tornozelo ao joelho", precisou em comunicado a polícia de Sarasota, a cidade dos eventos. Terá sido feita na tarde de segunda-feira, de acordo com a mesma fonte, um dia depois da morte de George Mendonsa..Os danos são de cerca de mil euros e, sem registo de câmaras de videovigilância, o autor pode nunca vir a ser descoberto. Fica a pergunta: o beijo do marinheiro à enfermeira, de 1945, pode ser visto à luz de um movimento que ganhou força em 2017 após as denúncias contra o produtor de cinema Harvey Weinstein?. A historiadora Maria Filomena Mónica, contactada pelo DN, começa com outra pergunta: porquê um graffito #MeToo? Uma vez que a autoria do graffito não se conhece, a resposta pode estar nas palavras de Greta Zimmer Friedman. O beijo não foi consensual, declarou a enfermeira beijada, numa entrevista em 2005. "Não o vi aproximar-se, e antes que me desse conta ele agarrou-me", contou à Biblioteca do Congresso. "Não foi evento romântico, na realidade", admitiu, ao mesmo tempo que o classificou de "ato de júbilo"..A explicação deixa de fora, porém, o que interessa a historiadores como Maria Filomena Mónica: "o contexto histórico". Dá, pois, o exemplo de uma canção que era ensinada aos filhos na escola, impensável nos dias de hoje..Sebastião come tudo, tudo, tudo. Sebastião come tudo sem colher. Sebastião come tudo, tudo, tudo. E depois dá pancada na mulher.."Não podemos usar a mentalidade contemporânea em séculos pretéritos"."O contexto histórico deve ser criticado, e aquele contexto era machista", explica ainda Maria Filomena Mónica sobre a canção. "Não podemos usar a mentalidade contemporânea em séculos pretéritos.".Outro exemplo da historiadora e biógrafa de Eça de Queirós: "A escravatura tem de ser entendida, não quer dizer perdoada, e depois de entendida podemos dizer que é um gesto abominável." Da mesma forma, nota, se pode ler a violência sobre mulheres ou a violação. "Hoje há mais denúncias, sem dúvida, há 50 anos também existia, mas as mulheres não a entendiam como nós.".Quem eram os protagonistas?.Na fotografia da autoria de Alfred Eisenstaedt, publicada em 1945 pela revista Life, George Mendonsa, descendente de portugueses, beija a desconhecida logo depois de ter descoberto que a II Guerra Mundial tinha terminado. Estava em Times Square, Nova Iorque, e antes da celebração tinha estado com a namorada e tinha tomado algumas bebidas. Estes factos escaparam ao fotógrafo, que, no seu relato dos eventos, recordava um marinheiro que corria pela rua decidido a agarrar a primeira rapariga que encontrasse..A identidade do casal protagonista foi um mistério de anos até se confirmar que ele era George Mendonsa, de origem portuguesa, como o apelido indicia, marinheiro destacado num navio de guerra, e Greta Zimmer Friedman, assistente de um dentista..Após a morte de Greta Zimmer Friedman, em 2016, aos 92 anos, o filho veio dizer que a mãe nunca tinha olhado para aquele beijo como algo negativo, lembra a BBC.."Foi 100% abusada", escreve J. Jay no Twitter sobre o graffito. "Apoio a 100% este vândalo", escreve..Anacronismo, diz Irene Flunser Pimentel."Anacronismo. É o que chamamos de anacronismo na história, isto é, quando retiramos as coisas do contexto", considera Irene Flunser Pimentel. A historiadora nota ao DN que é justamente da busca de contexto que se faz o trabalho de historiadores..Especialista em História Institucional e Política do século XX, traz outro exemplo de leituras que mudam com o passar dos anos - a pedofilia. "Não existia o termo, acontecia no seio da família e não há ninguém da minha geração que não se lembre destes casos. É bom que lhe seja atribuído um nome e que se tenha mudado de ponto de vista. O problema é que depois se compara tudo com tudo.".Como nos casos de assédio sexual, prática "terrível" que a geração de Irene Flunser Pimentel, nascida em 1950, viveu, e que a historiadora não quer confundir com um "ler tudo nesse contexto". "Não favorece, provoca até uma certa hostilização que não é boa para o movimento #MeToo.".Pondo fim à polémica com a estátua, a polícia de Sarasota fez saber que a pintura foi removida na terça-feira de manhã.