Viagens no tempo? Já foram muito exploradas, e de diferentes maneiras, é certo. A nova proposta da HBO pode não ter crédito no que toca à originalidade da ideia, mas tem certamente na sua aplicação narrativa: e se de repente surgissem na nossa sociedade pessoas, por exemplo, da Idade da Pedra? Isso mesmo. A cada flash de luz que irrompe no oceano, um ser humano vem à superfície, trazendo no corpo as marcas da sua época. Pode ser o vestuário, tatuagens ou adornos na pele. É um beforeigner..A série assim intitulada - Beforeigners - está disponível a partir de hoje na HBO Portugal e é a primeira incursão desta plataforma de streaming num projeto norueguês, com assinatura de Jens Lien. A história espalha-se ao longo de seis episódios, com 45 minutos cada. Ora dizer que estamos perante ficção científica será óbvio, mas talvez não seja tão esperado que dentro deste registo encaixe ainda o policial, o drama e uns pozinhos de comédia. Acima de tudo, a base de formulação deste cenário fictício é social: a chegada em massa de pessoas de outras épocas assume-se como a metáfora perfeita da atual crise dos refugiados..O fenómeno estranho que aqui se apresenta tem escala mundial, mas a amostra é a Noruega. Aí, não só os ditos primitivos, como também vikings e homens e mulheres do século XIX (são estes os três períodos contemplados) emergem para a contemporaneidade em resultado, à falta de melhor explicação, de um qualquer erro cósmico. Meia dúzia de anos depois estão a coexistir com os cidadãos deste tempo, enquanto outros continuam a chegar. O grande enigma reside no facto de nenhum desses beforeigners se lembrar da sua viagem no tempo, de como ali chegou. No entanto, todos eles parecem ter lampejos de memória das suas vidas anteriores e, carregando no ADN os hábitos da época a que correspondem, vão tentando adaptar-se à nova realidade sem deixarem apagar a sua referência temporal..Assim acontece com Alfhildr (Krista Kosonen), a primeira beforeigner a integrar a equipa de um departamento da polícia, que no seu passado "epidérmico" foi uma guerreira viking - algo que se exprime na própria postura corporal. No momento em que ela entra ao serviço, aparece um caso de homicídio que acaba por lhe ser adjudicado, num trabalho de investigação conjunta com Lars Haaland (Nicolai Cleve Broch), um experiente polícia que já teve melhores dias e agora depende do consumo de uma droga para aguentar o quotidiano..Esta é a dupla no centro de cada episódio, que se vai envolvendo nos contornos desse caso do assassínio de uma mulher, ao que parece, da Idade da Pedra. A par da investigação - que começa por sugerir a existência de negócios obscuros entre um homem das cavernas e um burguês do século XIX - surgem outras linhas na história, como a procura por uma antiga paixão da protagonista, o viking soberano Tore Hund, e ainda a família do agente Lars, que se reconfigurou com o fenómeno social. A saber, a ex-mulher casou-se com um homem do século XIX e adaptou a mentalidade a essa época (mesmo que não o temperamento), provocando situações caricatas no que toca à educação da filha, que vive em regime de custódia partilhada..Através de retratos de aculturação como este, a que estão inerentes conflitos de valores, Beforeigners produz uma imagem muito interessante sobre os efeitos da convivência de pessoas de diferentes eras - as formas de estar que colidem ou se misturam com os traços da modernidade. E tal panorama acaba sempre por nos remeter, inevitavelmente, para a questão bem real dos refugiados. Nas paredes leem-se frases como "A Noruega para pessoas norueguesas", e no refrão do tema de abertura, de Bobby Blue Bland, ouve-se "Ain't no love in the heart of the city"....De resto, todo o ambiente criado em função da excecional conjuntura é por si só uma viagem no tempo, fabricada com sentido de detalhe. Há bares vikings onde se bebe álcool em copos de chifre e se patrocinam noitadas selvagens, clubes de sexo multitemporais onde se veem sereias em aquário, e, na paisagem urbana, toda uma nova leitura da sociedade, com vestuário e hábitos anacrónicos em diálogo com os tiques da modernidade tecnológica. E apesar da incongruência, nada nos afasta de uma forte sensação de realismo. O passado é o futuro.