Estrangeiros detidos. Companhias aéreas recusam pagar milhares de euros ao SEF
Três companhias aéreas recorreram aos tribunais para contestar faturas de dezenas de milhares de euros que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras lhes apresentou, relativas ao alojamento e alimentação de estrangeiros por elas transportados para Portugal e cuja entrada no país não foi admitida por aquela polícia. A informação foi adiantada ao DN por António Portugal, diretor executivo da RENA/Associação das Companhias Aéreas de Portugal, que não quis identificar as empresas em causa.
Como o DN noticiou esta segunda-feira, o SEF cobra às companhias de aviação uma diária de 100 euros, estabelecida em portaria, pela permanência desses estrangeiros não admitidos nos seus centros de detenção - como o do aeroporto de Lisboa, onde Ihor Homeniuk morreu a 12 de março de 2020.
Caso um estrangeiro não admitido seja mantido em detenção até ao limite de tempo admissível - 60 dias é o prazo máximo previsto na lei para essa detenção - o valor relativo à "diária" ultrapassará seis mil euros. Pouco menos de 10 mil euros foi a conta que, de acordo com um funcionário de uma companhia aérea citado pelo DN, esta recebeu em 2018 relativa a apenas duas pessoas, uma que esteve dois meses num dos denominados "centros de instalação temporária" do SEF e outra que aí foi retida 41,5 dias. Ambas tinham requerido asilo ao Estado português.
Nos processos entrados nos tribunais, as três transportadoras alegam que "não se podem substituir ao Estado português no custo da sua política de segurança interna".
Em causa está o facto, explica António Portugal, de que com as alterações introduzidas em 2017 à legislação, que se consubstanciaram no que qualifica como "mais abertura para pedidos de asilo", aumentou o número de estrangeiros requerentes do mesmo que ficam a aguardar decisão das autoridades portuguesas - decisão que pode levar meses.
"O SEF entendeu apresentar às companhias de aviação o custo da manutenção dessas pessoas, apesar de o tempo de espera não lhes ser imputável", diz este representante das transportadoras. "A partir do momento em que o SEF passou a cobrar esta taxa às companhias e a fazê-las suportar encargos diários de 98 euros até 60 dias que estas companhias contestaram a liquidação da taxa em tribunal. Entendem que este encargo não deve ser suportado por elas, pois diz respeito ao custo pela permanência numa instalação pelo período durante o qual o cidadão em causa aguarda pelo resultado do pedido de asilo ou de outra medida - o que em última análise é sempre responsabilidade do Estado português. O direito que o passageiro tem de ver analisado o seu caso pelas instâncias competentes é um direito fundamental - mas tem de ser suportado pelo Estado."
De facto não são apenas os requerentes de asilo que ficam longos períodos nos "centros de instalação temporária". Também os estrangeiros não admitidos que recorram a apoio jurídico para impugnar a decisão de não admissão do SEF, como foi por exemplo o caso de Letícia Calil - a cidadã brasileira de 44 anos que conviveu com o ucraniano Ihor Homeniuk nos dois dias em que esteve sob custódia do SEF e que narrou ao DN em novembro a sua experiência enquanto esteve detida, testemunhando sobre agressões perpetradas pelos membros daquela polícia - podem ficar até 60 dias a aguardar o resultado dessa impugnação. Letícia esteve 58 dias no Espaço Equiparado a Centro de Instalação do aeroporto de Lisboa. E Ranilda Lucas, santomense de 44 anos que disse ao DN ter chegado a Portugal a 25 de fevereiro de 2020, com o objetivo de visitar os filhos, que aqui habitam, terá ficado detida cerca de 30 dias, uma vez que recorreu a um advogado para impugnar a decisão de a devolver ao seu país. Nenhuma destas mulheres pediu asilo.
Nestes dois casos poderá no entanto não ter sido apresentada a pesada fatura às companhias aéreas; de acordo com o diretor executivo da RENA, após os processos de impugnação da cobrança referidos darem entrada nos tribunais, entre 2018 e 2019, o SEF deixou de enviar aquelas contas astronómicas e passou a cobrar só os valores respeitantes às primeiras 48 horas - ou pouco mais, já que há voos que só ocorrem semanalmente, pelo que as companhias não podem repatriar nos primeiros dois dias -, de permanência dos estrangeiros não admitidos nos "centros de instalação temporária".
O DN questionou o SEF sobre qual o seu entendimento quanto às obrigações das companhias - se considera que devem ser apenas oneradas pelas primeiras 48 horas de detenção dos estrangeiros não admitidos e a partir daí passa a ser esta polícia a suportar o custo da respetiva manutenção, ou se aponta um outro prazo ou critério para a determinação da responsabilidade das transportadoras. Mas a resposta limitou-se a indicar a legislação - a lei de estrangeiros - que é omissa sobre prazos.
Esta lei, no seu artigo 41º, com a epígrafe "responsabilidade das transportadoras", diz: "A transportadora que proceda ao transporte para território português, por via aérea, marítima ou terrestre, de cidadão estrangeiro que não reúna as condições de entrada fica obrigada a promover o seu retorno, no mais curto espaço de tempo possível, para o ponto onde começou a utilizar o meio de transporte, ou, em caso de impossibilidade, para o país onde foi emitido o respetivo documento de viagem ou para qualquer outro local onde a sua admissão seja garantida. (...) Enquanto não se efetuar o reembarque, o passageiro fica a cargo da transportadora, sendo da sua responsabilidade o pagamento da taxa correspondente à estada do passageiro no centro de instalação temporária ou espaço equiparado."
Não só a lei não indica qualquer prazo para o encargo das transportadoras com a estada dos passageiros nos centros do SEF como é também vaga quanto ao que determina tal responsabilidade: o que é um estrangeiro "não reunir as condições de entrada" (no território nacional, bem entendido)?
Diz António Portugal: "Se é exigido visto e a pessoa embarcou sem visto ou se não tinha passaporte ou tinha um passaporte falso, é uma falha da companhia, tudo bem. Mas se o estrangeiro chega cá com tudo legal e o SEF considera que lhe faltam meios económicos ou outra coisa qualquer, não o deixa entrar e ele recorre dessa decisão, ou pede asilo, não percebo por que haverá de ser a companhia a assumir a responsabilidade; tem de ser o Estado português."
Um jurista de uma companhia aérea contactado pelo DN e que pediu para não ser identificado frisa até que no seu entender "a partir do momento em que um estrangeiro está mais de 48 horas detido e portanto há uma decisão judicial obrigatória sobre a sua permanência em detenção, a responsabilidade deixa de ser da companhia."
Já o entendimento do SEF será, aparentemente, que mesmo estrangeiros com visto turístico ou que não necessitam dele para turismo (caso dos nacionais do Brasil e da Ucrânia, desde que a estada não ultrapasse 90 dias) mas que o SEF considere que "vêm para trabalhar" não reúnem, no que ao artigo 41º da lei de estrangeiros importa, "as condições de entrada", pelo que a companhia aérea que os transportou tem não só de providenciar voo de regresso como de pagar pela respetiva manutenção.
De acordo com António Portugal, o SEF cobra até às companhias eventuais transportes desses estrangeiros para o hospital, se forem necessários.
O DN tentou saber junto do SEF quanto recebeu em 2019 esta polícia em diárias de detidos pagas pelas companhias, assim como qual a estimativa que faz do custo real da manutenção desses estrangeiros sob sua custódia. Nenhuma das questões foi respondida.
"A conta da exploração do hotel SEF deverá ter sido muito positiva", comentou ao jornal um jurista com conhecimento destas situações, e que pede para não ser identificado. "Basta atentar às condições que se viviam por exemplo no EECIT de Lisboa e que agora são conhecidas, através do caso Ihor Homeniuk." Recorde-se que quando este esteve detido pelo SEF, em março de 2020, o EECIT de Lisboa, cuja lotação máxima era de 58 pessoas, tinha, de acordo com o testemunho de uma inspetora do SEF em tribunal, "mais de 100, em condições deploráveis."
Contudo, segundo o último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do SEF, relativo a 2019 - o qual não indica o número de estrangeiros detidos nos CIT - os principais países de origem dos estrangeiros a quem foi recusada a entrada por esta polícia têm ligação a Portugal através da TAP.
Cerca de 79,4% das recusas de entrada incidiram sobre cidadãos nacionais do Brasil (3.965), sendo as restantes nacionalidades mais relevantes a angolana (202), da Guiné-Bissau (72) e a senegalesa (54).
O relatório citado mostra ainda, corroborando o que afirma o representante das companhias aéreas, que as recusas de admissão dispararam a partir de 2017, quando foram aprovadas alterações à Lei de Estrangeiros, que propicia uma maior abertura à legalização de imigrantes, e que acabou por ter o "efeito chamada" (ou seja, trazer mais estrangeiros ao país na perspetiva de poderem ficar). Efeito esse travado pelo SEF no aeroporto: assim, por exemplo, tendo em conta os dois principais motivos para a recusa, se em 2017 apenas 464 estrangeiros viram recusada a sua entrada por falta de visto, em 2019 essas recusas dispararam para 2618 (cinco vezes mais); também a recusa por "falta de motivo que justifique a entrada" aumentou para quase o triplo, de 664 em 2016 para 1848 em 2019.
Se apenas metade dos cidadãos provenientes do Brasil e não admitidos em 2019 tiverem voado pela TAP, e ficado apenas um dia à espera de voo de repatriamento, o custo suportado pela companhia aérea com a "taxa" do SEF nacional terá orçado os 200 mil euros (2000 vezes 100).