"Walk alone in an empty street, walk alone in a silent city", ouve-se a dada altura, de forma quase profética, em Panoptical Architecture for Empty Streets in a Silent City, uma das canções que compõem Transgressio Global, o primeiro álbum em dez anos dos Pop Dell Arte, cuja edição foi novamente adiada, tal como os concertos de apresentação, devido à pandemia do covid-19. Em contrapartida, será hoje lançado o singleSem Nome, uma das canções mais políticas do disco, que tem como tema central um "amplo conceito da transgressão", conforme explicou ao DN o vocalista da banda, João Peste..Ao todo, são mais de 80 minutos de música, naquele que também é o mais extenso disco da já longa carreira dos Pop Dell'Arte - iniciada em meados dos anos 80. O novo álbum do grupo composto por João Peste, Paulo Monteiro, Zé Pedro Moura e Ricardo Martins, o novo baterista, é composto por 22 gravações inéditas, entre elas a primeira versão alguma vez gravada pelos Pop Dell'Arte, neste caso do clássico El Derecho de Vivir en Paz, do chileno Victor Jara. Também pela primeira vez, existem temas construídos a partir de poemas de outros autores, neste caso de Luís Vaz de Camões, do poeta romano Gaio Valério Catulo e de um autor anacreôntico desconhecido, que João Peste canta no grego antigo original..A primeira impressão que fica, depois de se ouvir Transgressio Global, é a de que se trata de um trabalho bastante variado, em termos musicais. Isso deve-se ao facto de ter demorado tanto tempo a ser feito? Foi de facto um processo realmente lento, mas creio que todos os álbuns dos Pop Dell'Arte tem essa característica, de serem bastante variados em termos de ambientes musicais. O álbum até já estava pronto há cerca de um ano, mas por questões estratégicas, de promoção, decidimos agendar o lançamento apenas para agora. Entretanto, os planos saíram-nos um pouco ao lado, por causa da pandemia, que nos obrigou a adiar novamente o disco..É também um álbum muito longo... Ficou muito grande, é um facto. É o nosso maior álbum, o que nos vai obrigar a fazer um duplo disco, em vinil. E na edição em CD há até um tema que vai ter de ficar de fora, mas que estará disponível na versão online do disco. Podiam na verdade ter sido dois discos, mas isso não nos pareceu fazer muito sentido, porque desta forma existe um conceito a unir todos os temas..Porque é que demoraram tanto tempo a fazer este disco? Não foi assim tanto tempo. É certo que já passaram dez anos desde o nosso último disco, mas este álbum só começou a ser feito em 2015. Numa primeira fase, apenas por mim e pelo Paulo Monteiro e depois, num processo mais coletivo, já com a banda toda a trabalhar em conjunto, na sala de ensaios. E mesmo assim, no final deste processo, houve muitos temas que acabaram por ficar de fora, à espera de outra oportunidade para serem editados..Concorda que este álbum tem alguns momentos assumidamente políticos, de clara contestação à sociedade capitalista em que vivemos, como o novo singleSem Nome ou a faixa Anonymous? Sim, especialmente o Anonymous, que foi um tema escrito durante os tempos da troika e, portanto, muito influenciado pelo contexto político da altura. Acima de tudo, pretendíamos que o disco, mesmo sendo tão variado em termos musicais e de temáticas, tivesse a uni-lo um conceito de transgressão, que também está muito próximo da nossa história enquanto banda. E a busca por esse conceito levou-nos até Michel Foucault, um filósofo que teorizou bastante sobre transgressão. É certo que existe hoje uma discussão académica sobre o que é a transgressão, se a mesma é possível num contexto pós-moderno, mas nós continuamos a acreditar que sim..E como é que surgiu a ideia de cantar em latim ou em grego antigo? A ideia de soar um poema latino era algo que já estava na minha cabeça há algum tempo. Escolhi um do Gaio Valério Catulo porque, no seu tempo, ele próprio também foi um transgressor. Foi mais ou menos contemporâneo da geração do Marco António e do Júlio César e fez parte de um movimento literário que ficou conhecido como os neotéricos, ou seja, os novos, que mexeram muito na altura com o que eram os cânones da poesia clássica e nesse sentido pode também ser considerado um transgressor. Já o grego surge porque enquanto estudei grego antigo deparei-me com uma série de poemas anacreônticos muito interessantes, como este, que tem que ver com o corpo e a sexualidade. E, uma vez que já tinha um grego e um latino, porque não ter um também em português? E optámos, por isso, por um dos poemas mais políticos do Camões, o "Cá, nesta Babilónia"..Há também um tema dedicado a Apolo, o que não deixa de ser surpreendente, numa banda aparentemente tão dionísica quanto os Pop Dell'Arte?.É uma questão interessante, porque eu próprio pensei muito nela. Esse é um dos temas mais antigos que temos no disco e que acabou por ser recuperado no tal contexto de transgressão inerente ao álbum. Creio que podemos aceitar a presença desses dois conceitos nos Pop Dell'Arte, porque eles são complementares, até nas tragédias clássicas há um lado dionísico. Reconheço que existe uma certa ironia nessa referência, mas isso não significa que haja qualquer contradição, muito pelo contrário, porque são conceitos que não existem isolados. Sem ordem não haveria transgressão..O que é hoje, afinal, a transgressão? Há quem defenda que, na arte, a transgressão acabou no século XX, com o pós-modernismo, mas eu não concordo, pode é estar um bocadinho mais adormecida, devido ao conformismo e à resignação que nos querem impor. Fala-se muito do fim da história, mas também não acredito nisso, até porque vivemos tempos fascinantes. A globalização é inevitável, embora pudesse ser feita de outra forma, mais inclusiva. Tal como a sociedade da informação também não está a ser utilizada de forma correta, fomentando a manipulação, o isolamento e o narcisismo. No fundo, faz falta mais transgressão, para ultrapassar estes limites..E isso aplica-se também à música? A música popular sempre esteve ligada a uma cultura jovem e transgressora, que tinha uma ética ideológica e moral, mas hoje, numa época em que há cada vez mais e melhores músicos, a maior parte limita-se a reproduzir tudo aquilo que já foi feito. E isto não se trata de uma questão geracional, é um problema do mundo contemporâneo, que aceita tudo tal e qual como lhe é apresentado, sem questionar o que quer que seja..Já não estamos a falar de música novamente, pois não? Não, mas também não estou a falar da atual pandemia. Neste momento, a esse respeito, temos de ter muito cuidado e seguir os conselhos das autoridades de saúde. Falo, por exemplo, do que aconteceu nos tempos da troika, em que tudo nos é apresentado como a consequência de algo. E o mesmo se pode aplicar ao trabalho e às relações profissionais. Hoje em dia, existe uma nova classe social, que é a do precariado, que é bastante fácil de manipular. É algo terrível, que está impregnado no pensamento de toda a gente, até de alguns políticos de quem se deveria esperar o contrário..Daí também a opção pela versão de El Derecho de Vivir en Paz, de Victor Jara? É a primeira vez que os Pop Dell'Arte gravam uma versão de alguém, certo? Sim, é a primeira vez. Já tocámos algumas versões, de Lou Reed, Roxy Music ou de José Afonso, mas sempre em determinados contextos. E, apesar de não gostarmos muito de tocar a música de outros, ficámos bastante entusiasmados quando esta ideia surgiu, por ser de certa forma inesperado que tocássemos Victor Jara, que é um artista com um significado bastante diferente hoje, quando comparado com o que tinha na sua época..Em que sentido? Na altura, era um artista quase mainstream, tendo em conta a conjuntura política da época. Mas hoje, apresentado assim, fora do seu contexto, torna-se transgressor, por ser algo exótico e quase inexistente na sua militância..Este é também o primeiro álbum com a participação do novo baterista, Ricardo Martins, que é bastante mais novo do que os restantes elementos da banda. O que trouxe ele para os Pop Dell'Arte? Todos os elementos que passaram pela banda deixaram a sua marca, apesar de termos conseguido manter sempre a nossa identidade, porque o projeto é sempre o mais importante. O Ricardo integrou-se muito bem e, como é mais jovem do que todos nós, trouxe esse tal sangue novo, que também faz falta a bandas como a nossa. Ao fim de tantos anos a tocar, é natural que surjam algumas dúvidas, se aquilo que estamos a fazer ainda interessa às pessoas, especialmente aos mais novos. E o Ricardo acabou por ajudar também nesse sentido.