"Todas as pessoas têm o dever de ser responsáveis pela sua própria saúde e pela melhoria da saúde da comunidade, tendo o dever de as defender e promover.".Foi esta a norma da proposta do governo para uma nova Lei de Bases da Saúde - o diploma que dá enquadramento geral ao SNS (Serviço Nacional de Saúde) - que a ex-ministra da Saúde Maria de Belém denunciou recentemente no Parlamento como inconstitucional e representando, além do mais, no seu entender, "uma alteração estruturante" na filosofia geral do sistema..Para a antiga dirigente socialista, a norma, assim escrita, "abre a porta a que as pessoas que não se portam bem, de acordo com uma avaliação que não sei por quem é feita, não tenham acesso aos cuidados de saúde"..Dito de outra forma: na interpretação da antiga presidente do PS, a norma, como está escrita, pode possibilitar, por exemplo, que o SNS recuse tratar uma vítima de cancro no pulmão se for fumador (porque o doente objetivamente não cumpriu "o dever de ser responsável pela sua própria saúde", já para não falar na "saúde da comunidade"..No entender de Maria de Belém, esta questão "não é um fantasma", é uma discussão que tem sido levada a cabo por vários países, designadamente da União Europeia. "Não são coisas irrelevantes (...) não posso aceitar isto", enfatizou..O alerta foi ouvido na direção da bancada parlamentar socialista. Pedindo o anonimato, um dirigente parlamentar socialista admitiu ontem ao DN que na discussão na especialidade - que está a decorrer e no âmbito do qual Maria de Belém foi ouvida - a norma poderá ser "reescrita" ou mesmo "cair". O PS, que está a negociar à esquerda a revisão da Lei de Bases da Saúde - e que acredita existirem boas hipóteses de ser possível uma versão de acordo entre as apresentadas pelo governo, pelo BE e pelo PCP -, não quer deixar que este esforço seja depois aniquilado por uma declaração de inconstitucionalidade. A votação final da lei só deverá ocorrer no final da legislatura. As negociações prosseguem..Na Constituição lê-se (artigo 64.º) que "todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover". Ou seja: a Lei Fundamental não estabelece que é um "dever" de cada cidadão "defender e promover" a saúde "no plano individual", como agora a nova Lei de Bases da Saúde avançada pelo governo propõe..Ou seja: o sistema assenta na ideia de liberdade de escolha - cada cidadão pode recusar tratamentos médicos e não ser penalizado por ser descuidado com a sua saúde. É este princípio de liberdade que justifica, por exemplo, que a vacinação não seja obrigatória. Nenhuma criança pode ser recusada numa escola pública se não tiver as suas vacinas em dia..Maria de Belém foi ouvida no Parlamento porque lhe coube, incumbida pelo anterior ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, preparar uma anteproposta de lei de revisão da Lei de Bases da Saúde..Em outubro do ano passado, Adalberto Campos Fernandes foi substituído na pasta por Marta Temido e esta acabou por operar uma enorme revisão na anteproposta que fora entregue pela comissão liderada por Maria de Belém..A ex-ministra não escondeu o seu desagrado com as mudanças feitas pela nova ministra no "seu" texto original. "Com a mudança no governo, a atual ministra, que tem uma visão diferente da minha do que deve ser uma lei de bases, entendeu reformular a proposta e, apesar de manter algumas das frases, decidiu passar de 59 bases para 28." "Podia ser irrelevante, mas em direito e em política não é irrelevante. Disse que a nossa proposta era muito extensa. Uma proposta não se mede em extensão, mas em conteúdo", afirmou Maria de Belém Roseira, num debate, na sede nacional do PS, em dezembro do ano passado, que a juntou com Marta Temido e com o ex-ministro Adalberto Campos Fernandes para discutirem, precisamente, a nova lei de bases..Marta Temido defendeu-se: "Acredito que esta lei prova os princípios socialistas e os princípios que queremos afirmar em matéria da saúde", acrescentando que esta proposta é boa porque respeita os princípios básicos do que deve ser uma Lei de Bases da Saúde - "concisa" e "capaz de resistir melhor à passagem do tempo"..Já Adalberto Campos Fernandes desvalorizou a necessidade de uma nova lei para resolver os problemas do SNS: "A Lei de Bases não vai ser o alfa nem o ómega para a resolução dos problemas do SNS. É preciso que os portugueses todos reclamem que o problema essencial do SNS, hoje, é a falta de investimento em infraestruturas e equipamentos e também a falta de investimento no edifício das profissões. Que tenha carreiras que são carreiras livres, que permitam a diferenciação, a vontade de trabalhar no SNS não porque estão presos os profissionais, sequestrados ou retidos, mas porque gostam."