Áustria prepara alternativa a plano de recuperação franco-alemão
"Histórico", "inédito", "excelente". Não faltam adjetivos para qualificar o plano franco-alemão para a recuperação económica da União Europeia da hecatombe provocada pela covid-19. E cai um tabu em Berlim, a dívida mutualizada. Não são coronabonds, mas é muito parecido.
Os dois países propõem um envelope financeiro de 500 mil milhões de euros - cerca de 3,5% do produto interno bruto dos 27 - para apoiar os países mais afetados pela pandemia. Mas, desta vez, não são empréstimos. São ajudas diretas financiadas através de dívida emitida pela Comissão Europeia (CE) e apoiada por todos os Estados membros. O presidente francês garantiu que "não serão empréstimos, mas subvenções".
O dinheiro seria distribuído pela CE sob a forma de subvenções ou dotações como parte do orçamento normal. Ou seja, não entraria na dívida dos países o que para Portugal (ou a Grécia ou Itália) pode representar um alívio significativo, dado o volume já acumulado. "É uma sinalização clara", sublinha o economista Paulo Trigo Pereira, ex-deputado independente eleito pelas listas do PS.
A proposta, que foi bem recebida por Bruxelas, ainda precisa de passar pelo crivo de todos os países membros e exige a aprovação por unanimidade. E promete ser um processo tudo menos calmo e sereno. Países como a Áustria, a Holanda, Dinamarca e Suécia - os chamados "frugais" - já apontam para um braço de ferro. "Será preciso ultrapassar esse obstáculo", frisa o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
Os sinais já foram dados. O chanceler austríaco, Sebastian Kurz, deixou bem marcada a oposição. "Estamos céticos. A nossa posição é clara: queremos ser solidários com os Estados mais afetados pela crise, mas acreditamos que os empréstimos são o caminho certo, não as subvenções", afirmou ontem depois de ter falado com os homólogos da Holanda, Dinamarca e Suécia.
"Nos próximos dias vamos apresentar uma proposta com as nossas próprias ideias. Acreditamos que é possível estimular a economia europeia e, ao mesmo tempo, evitar a mutualização da dívida", afirmou Kurz. Advinham-se dias de discussão acesa em Bruxelas.
Portugal reagiu com entusiasmo à proposta franco-alemã. "É uma excelente proposta para se encontrarem mecanismos robustos de resposta à crise europeia, procurando salvaguardar empresas, emprego e rendimentos", afirmou ontem o primeiro-ministro, questionando sobre a forma como seria distribuído o dinheiro.
Mas a forma de distribuição é apenas uma das questões ainda por responder sobre a proposta de Paris e Berlim. "Qual vai ser a chave de repartição do fundo de recuperação, se pelos critérios tradicionais da coesão, se por setores (como o turismo) ou por regiões mais afetadas?" questiona António Costa.
E falta também saber, por exemplo, como vai ser reembolsado este empréstimo que a Comissão Europeia vai fazer aos mercados. "O que falta saber é que recursos adicionais vão ser colocados no orçamento europeu para pagar este empréstimo, para não haver cortes, como na Política Agrícola Comum", aponta Trigo Pereira.
E ainda falta o plano de recuperação que está a ser preparado pela Comissão Europeia e que deve conhecer a luz do dia no final deste mês - tudo aponta para o dia 27 - e que poderá ultrapassar um bilião de euros (os doze zeros que Mário Centeno tem referido repetidamente).
Na declaração conjunta divulgada na segunda-feira, França e Alemanha não esclarecem estas questões e em relação a financiamento apenas surge um parágrafo sobre uma taxa a aplicar à economia digital, mas sem avançar pormenores.
"São taxas e impostos que não geram muita receita, mas é importante avançar, nomeadamente no digital", aponta Paulo Trigo Pereira. "Se será suficiente ou não, depende do prazo de reembolso deste empréstimo", acrescenta o professor de finanças públicas.
O influente instituto alemão de análise económica Ifo indicou ontem que os apoios terão de ser pagos no futuro, sinalizando uma aposta em empréstimos em vez de subvenções a fundo perdido. "Um dos aspetos cruciais do fundo [de recuperação] é que o seu financiamento através de dívida é um evento pontual (one-off) com um plano de pagamentos", afirmou Clemens Fuest presidente do Ifo, acrescentando que "os reembolsos devem começar quando a economia começar a recuperar. Após o aumento da dívida soberana, a Europa deve ter um plano credível para reduzir os seus rácios", concluiu.