Os resultados saíram há duas semanas, e o projeto apresentado por Maria de Lurdes Rosa, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi um dos vencedores das chamadas bolsas de consolidação do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês)..A historiadora, que há muito estuda o tema dos morgados e a sua função social na história de Portugal, ganhou uma bolsa no valor de 1,6 milhões de euros, para os próximos cinco anos, para prosseguir a sua investigação. Com isso, o seu estudo vai mudar de escala. A verba vai permitir-lhe contratar oito bolseiros, e quatro deles vão realizar um trabalho essencial que está por fazer: passar a pente fino todos os arquivos do país para identificar, recuperar e digitalizar toda a documentação que for encontrada sobre os morgados.."Vamos fazer uma base de dados utilizando um software de código aberto, acessível a toda a gente, isso para nós é muito importante", explica Maria de Lurdes Rosa. Do trabalho já feito, que iniciou ainda nos seus tempos de licenciatura, a historiadora calcula que existissem no país sete mil morgados e capelas, que eram propriedades vinculadas que passavam de pai para filho, e se destinavam a perpetuar a posse da terra na família, mas também a zelar pelas almas dos antepassados. Isso era feito através de missas obrigatórias, estipuladas aquando da fundação do morgado..Feita a base de dados, segue-se a segunda fase do projeto: o estudo, a partir dessa documentação, do fenómeno, nas suas facetas de poder, de parentesco e de identidade, enquanto entidades estruturantes da sociedade portuguesa. Os próximos cinco anos serão de muito trabalho, Maria de Lurdes Rosa não podia estar mais satisfeita..Foi uma surpresa, ganhar esta bolsa milionária do Conselho Europeu de Investigação? Eu tinha muita esperança no projeto, mas quando concorremos nem sempre ganhamos. Digo aos meus alunos que o melhor é concorrer sempre. O meu score [de projetos ganhos] é de cerca de 20%. Em 80% dos casos perdi, mas isso tem de ser encarado como um treino. Tinha esperança no projeto, mas sabia que a competição era muito elevada. No painel de ciências sociais e humanas, numa primeira fase, eram 600 projetos a concorrer, que passaram a 200 na eliminatória seguinte, distribuídos por seis áreas. Na História acabaram por ser aprovados 16. A competição é muito elevada e por isso ganhar ainda é mais satisfatório..Também é importante para a afirmação interna da História, enquanto disciplina que deve ser mais apoiada? Sem dúvida. Temos de começar a competir como os outros competem. Noutras áreas como a engenharia, a medicina ou as ciências da vida, a investigação precisa de muito dinheiro, porque implica muito material de laboratório e muita experimentação. Mas concorrem e isso tem trazido uma grande internacionalização e excelência a essas áreas em Portugal. Nas ciências sociais e humanas é muito importante que comecemos também a fazê-lo. É triste ver que a Europa do Norte ganha muito mais projetos do que nós nas ciências sociais e humanas, às vezes com projetos sobre temas da Europa do Sul. Em Portugal, a academia só se modernizou depois do 25 de Abril, e temos outras desvantagens que têm que ver com trabalho precário. Muitos destes bolseiros que vou contratar para o projeto são excelentes, mas provavelmente nenhum deles tem um vínculo fixo a nada. Temos esses handicaps todos e, se não começarmos a concorrer a estes projetos, não conseguimos ultrapassá-los. Mas também é bom que as instituições percebam que um bolseiro precário não consegue fazer um projeto destes, que exige muito tempo. Com uma bolsa precária, as pessoas têm de andar a fazer muitas outras coisas para ganhar dinheiro..Essa é uma mensagem para dentro? Sem dúvida. Também é uma mensagem para dentro, para que para a história e as ciências sociais e humanas em geral sejam tratadas de forma idêntica às outras áreas. Eu tive incentivos da faculdade. Nós temos um financiamento para concorrer a estes projetos europeus. Sem dinheiro não se consegue preparar um projeto destes, porque é preciso traduzir imensas páginas e as traduções são caras, por exemplo. Eu fui à Holanda, a dois workshops de preparação de projetos. Todas as universidades holandesas ou inglesas recorrem a estes workshops. E a Holanda e a Inglaterra são máquinas de ganhar projetos porque têm este know-how administrativo muito bem rodado..O que é preciso fazer em Portugal para chegar aí? Para que ganhar estas bolsas não seja a exceção mas comece a ser a regra? É preciso profissionalização. Muitos destes jovens que nos ajudam na preparação dos projetos também são precários. E os que não são, às vezes, também estão assoberbados de trabalho. Temos de recorrer também a estas empresas que fazem esta preparação de projetos. A empresa a que recorri é aquela a que recorre a maior parte das universidades nos outros países. As candidaturas são tão complexas que é necessária essa profissionalização, as universidades portuguesas têm de perceber isso. Nas outras áreas, da engenharia ou das ciências da vida, já perceberam. Um dos conselhos que me deram foi o de não levar um powerpoint caseiro, mas um power point profissional. Eu levei, mas teve de haver recursos para o pagar. Todas estas coisas contam para ganhar. E nós podemos ganhar, porque temos muita coisa para dizer. Temos uma história muito interessante..Quebrar barreiras para ir mais além.Quais são os pontos fortes do projeto? O júri salientou alguns. Por um lado, ultrapassa as fronteiras cronológicas convencionais, porque toca o século XIV e vai até ao século XVII. Os historiadores, tradicionalmente, colocam no século XV o fim da Idade Média e o início do Renascimento. No projeto fiz tábua rasa desse corte porque isso impedia a perceção do fenómeno que está aqui em estudo. Além de que, genericamente, é um corte muito artificial, que tem sido criticado nas últimas décadas, como depreciativo da Idade Média, e pela visão progressista que implica da história - uma visão que não se compadece, aliás, com os desastres do século XX. Um segundo ponto forte tem que ver com o facto de o projeto contemplar Portugal continental, mas também o espaço atlântico, o que tradicionalmente está espartilhado por especialidades históricas, em que Portugal fica para os medievalistas e modernistas, e o espaço atlântico para os especialistas da expansão e dos Descobrimentos. Mas isso impede a perceção de um conjunto de dinâmicas entre o espaço continental e atlântico e vice-versa. Uma hipótese que vamos investigar é como o que se passou nos Açores e na Madeira no caso dos morgados influenciou, por sua vez, o continente..Que novidades podem vir daí, de quebrar essas barreiras tradicionais na visão da história? Se não contemplarmos todo o período dos séculos XIV ao XVII não conseguiremos compreender este fenómeno dos morgados. Espartilhar as coisas não tem sentido em fenómenos de longa duração. O tempo dos fenómenos das mentalidades não é o mesmo da economia, e os ritmos políticos também são outra coisa. Em história, o tempo não é linear, varia de acordo com o que estamos a estudar. Perceber como durante centenas de anos se acreditou na necessidade de sufragar as almas do purgatório, através destes vínculos em que as propriedades serviam para sustentar essa prática, através de missas, não é possível sem o estudo das mentalidades. E o tempo das mentalidades é tendencialmente muito mais longo..Outro ponto fundamental do projeto é o levantamento e o estudo dos arquivos Sim. O projeto assenta em ir aos arquivos procurar os documentos e depois tratá-los. Nos dois primeiros anos vamos fazer uma base de dados com os documentos relativos a todos os morgados fundados em Portugal entre os séculos XIV e XVII. Vamos começar por fazer um estudo sobre a forma como as pessoas, através dos séculos, produziam documentos relativos aos morgados e sobre o que aconteceu a esses documentos. A maior parte deles não estão no arquivo nacional, na Torre do Tombo. Vamos ter de ir à procura deles, mas esta é uma parte fascinante da pesquisa histórica. Há imensos destes arquivos que ainda estão nas mãos de privados. Outros, as pessoas depositaram nos arquivos municipais e distritais, e têm-me telefonado e escrito pessoas a dizer que ainda têm arquivos, ou que um ascendente, uma bisavó, depositou documentos nalgum arquivo local..Porque é que a maioria desses arquivos não está na Torre do Tombo? Por vários motivos. Mas o principal é que o arquivo nacional, no século XIX, não considerava importantes estes arquivos privados, das famílias e de instituições, até porque quando o arquivo nacional foi fundado eles ainda existiam como entidades próprias e tinham, portanto, os seus próprios arquivos. Os morgados só foram extintos depois da formação do arquivo nacional da Torre do Tombo. Portanto, esses documentos foram guardados pelas pessoas. E por isso o projeto tem essa dimensão: perceber como esses documentos foram conservados, por quem, e como chegam até nós. É uma parte importante deste projeto contactar pessoas, câmaras e arquivos distritais do país em busca desses arquivos..O que eram exatamente os morgados? Eram instituições jurídicas de propriedade. O que mais se aproxima disso hoje é uma fundação. Alguém definia uma propriedade, e em Portugal não podia ser a sua totalidade, mas apenas uma parte, porque o resto era para dividir entre os herdeiros forçosos. Mas normalmente era a melhor parte da propriedade, a melhor casa, as melhores terras, as relíquias. E ficava definido que a propriedade nunca podia ser vendida nem dividida e seria sempre administrada por uma pessoa..Quem é que podia definir o início de um morgado? Um fundador, normalmente um pai de família, que o fundava para o filho mais velho. Mas também havia morgados para filhos segundos e para filhas, como dote, quando casavam. Normalmente era obrigatória a sucessão de pai para o filho varão mais velho. Havia uma subalternização das linhas femininas e dos filhos segundos. Os fundadores tinham um poder bastante ilimitado, que em grande parte não era condicionado nem pela Igreja nem pelo rei, de impor cláusulas ao administrador. De não poder casar, por exemplo, com judeus ou com mouros. Há um conjunto enorme de cláusulas desse tipo..Como surgiu essa figura do morgado na sociedade portuguesa? Essa é uma das coisas que queremos descobrir. Começar no século XIV permite-nos apanhar a transição do fim da Reconquista, na fase da consolidação do reino, e um pouco antes. Esse período é muito importante, porque há aí um conjunto de transformações na relação entre o rei e as elites, ou seja, a nobreza, e na própria monarquia, que se torna mais burocrática. A nossa hipótese é que as pessoas que tinham algumas propriedades começavam a fundar morgados para defender a esfera familiar em relação ao rei e à Igreja. A ideia de partida é essa. Teve algo que ver com a consolidação da sociedade pós-Reconquista, mas não tenho a certeza. Vamos fazer esse estudo..Sociedades católicas e protestantes.Esse fenómeno abrangeu outros países europeus? Em Inglaterra ainda existe. Mas um morgado inglês era muito mais condicionado pelo Parlamento e pelo rei do que o nosso e, portanto, os direitos dos morgados eram aí mais facilmente quebrados. Os morgados que vamos estudar, os de Portugal, são muito semelhantes aos de Castela. Na Península Ibérica há variações porque os diferentes reinos tinham leis diferentes, mas genericamente são parecidos. Depois há muitos em zonas de Itália, em parte porque Nápoles teve dominação espanhola e aragonesa. Em França também houve, a partir do século XVI, numa cronologia mais tardia, quando as aristocracias tentaram fechar-se para se defender contra o absolutismo. Mas na Península Ibérica, e em Portugal, sobretudo, este é um fenómeno muito precoce. A componente religiosa muito forte dos morgados desapareceu na Europa protestante, que deixou de acreditar na possibilidade de sufragar as almas e diminuir o seu tempo de purgatório através de missas. Na Europa católica, pelo contrário, o culto das almas aumentou imenso e os morgados tinham esta componente de base. Mas é uma faceta que tem mais que ver com os leigos do que com a Igreja, com a reivindicação antiga das famílias de cuidarem das almas dos seus antepassados. Isso foi algo que a Igreja, que a partir dos séculos X e XI era tendencialmente totalitária e controladora, nunca viu com bons olhos..Os morgados fugiam a esse controlo por parte da Igreja? Sem dúvida. Para os leigos, a relação com os mortos era de identidade e de proximidade, e os morgados vêm colocar algum controlo das almas, que pertencia exclusivamente à Igreja, na mão dos leigos, uma vez que são eles que os instituem e destinam aquele dinheiro..Quando é que os morgados foram extintos em Portugal? Foram extintos em 1863, mas essa última parte já está fora do meu estudo. O que é interessante é que eles são um fenómeno típico de uma determinada sociedade e funcionam bem enquanto resolvem os problemas dessa sociedade. Mas quando a sociedade começou a não se rever naqueles paradigmas, os morgados começaram a parecer-se com uma espécie de fóssil, uma coisa arcaica e retrógrada. O Marquês de Pombal, que entre 1750 e 1770 fez um conjunto de leis para acabar com morgados e capelas mais pequenos, tem a esse propósito uma frase muito interessante: "Chega-se a um ponto em que as almas do outro mundo são as proprietárias da maior parte dos prédios [propriedades] do nosso reino." E era verdade. Aquelas propriedades não se podiam vender nem dividir, e havia milhares de capelas naquela altura. Com a queda do Marquês de Pombal, as coisas voltam um bocadinho ao mesmo, mas já muito menos gente fundava morgados porque socialmente já era menos eficaz. Depois, com o liberalismo, o Código Civil veio estabelecer a igualdade entre os herdeiros, mas mesmo assim demorou um século, desde o Marques de Pombal até 1863, para a abolição total desta propriedade vinculada que eram os morgados..Essa figura que durou tantos séculos deixou marcas visíveis na sociedade portuguesa? Isso é algo que gostava que os colegas que estudam esses períodos posteriores averiguassem. A minha hipótese é que sim. No projeto está prevista a realização de um colóquio sobre os séculos XIX e XX, porque há pelo menos uma influência muito grande na literatura, nos romances. Basta lembrar os títulos A Morgadinha dos Canaviais [de Júlio Dinis], O Morgado de Fafe em Lisboa [de Camilo Castelo Branco], e todos os romances de Eça [de Queirós] e de Camilo [Castelo Branco] que troçam ou enaltecem a figura do morgado. Depois há uma certa quebra, mas Salazar, quando funda a sociedade corporativa, vai recuperar esta sociedade de corpos pré-liberal, como dizemos. Além disso, há quem defenda que o paternalismo, que existe muito em Portugal, e alguma força ainda da família terão que ver com isso. Vamos pelo menos fazer um colóquio sobre isso..O que é que este projeto pode dar à história da Europa? Muito. Muitas vezes falo com os colegas espanhóis sobre os morgados e toda a gente sabe de que se trata. Basta ultrapassar a fronteira para França e a reação é: "Mas o que é isso? Uma especificidade Ibérica? Expliquem lá isso." Se num colóquio francês pedirmos para nos explicarem certas coisas francesas, chamam-nos ignorantes. Ou seja, nós temos de saber o paradigma francês, inglês e alemão, a chamada História Geral da Europa. Mas a História da Península Ibérica está numa espécie de periferia dos paradigmas de explicação histórica. Não é correto do ponto de vista científico..Como é que a Europa pode vir a reconhecer este conhecimento sobre os morgados como parte da sua história também? Se a Europa reconhecer que é feita de muitas realidades diferentes, então pode perceber que essa história também é a sua história. Mas, muitas vezes, aqui também olhamos para Europa e para os europeus como algo distante. Continua a haver este gap. E há muito esta ideia de que os franceses, por exemplo, podem dizer algo como "isso são especificidades ibéricas". Mas se lhes falássemos de especificidades francas ficariam ofendidos, porque olham para a sua própria história como sendo o paradigma da história..Porque lhe parece que é assim? É um conjunto de coisas. São equilíbrios de poderes, o facto de estarmos na periferia, o isolamento em que vivemos, muito virados para África, a nossa escassez de meios, e uma sobranceria também do norte da Europa e dos seus paradigmas historiográficos. Mas o que a Europa pode perceber com este conhecimento sobre os morgados é que as sociedades da Europa católica, que fizeram a expansão e colonizaram outros territórios, eram sociedades racionais, que pensavam e organizavam as coisas. E isso devolve-lhes dignidade. Com os mecanismos de afirmação dos impérios coloniais e holandês e britânico, as nossas sociedades ibéricas foram muito menorizadas. Esses impérios utilizaram lendas negras sobre a Ibéria, vista como tendo sociedades irracionais, com influência árabe, e que ainda hoje funcionam. Portanto, devemos valorizar a história da Europa do Sul, que é muito boa. E há muitos sítios da Europa onde ela não é subalternizada. Há excelentes sítios em Paris ou em Londres, onde estudam, às vezes melhor do que nós, alguns aspetos que aqui ainda são tabu, como a escravatura.