Nesses dias, quando ligávamos a televisão, surgia no canto superior ou em rodapé a injunção maior: Fique em casa! Qualquer que fosse a dimensão do nosso medo, para aqueles que tinham habitação com condições mínimas de vida e trabalho não essencial à sobrevivência comum abria-se um tempo diferente dentro do tempo..Essa suspensão da ordem do tempo, da sua regulação e das suas rotinas, das suas imposições e da sua previsibilidade, trouxe-nos um sentimento que acompanha os grandes momentos de crise, as guerras como as catástrofes, a angústia de perder as referências do quotidiano e ficar de repente sozinho em frente de si próprio. O famoso paradoxo de Sartre "nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã" descreve essa situação em que, num mundo que não oferece mais qualquer segura referência que nos enquadre, somos obrigados nós próprios a assumir a liberdade das nossas escolhas de vida e a plena responsabilidade por essas escolhas. Há nesses momentos uma angústia pela perda de identidade misturada com uma estranha sensação de férias..Muitos tiveram de viver com o seu núcleo familiar numa coexistência estranha, porque permanente e incontornável; muitos tiveram de enfrentar a mais dura e desumana solidão. A subsistência para muitos estava longe de estar assegurada. A vida endurecia dia após dia..Nesse momento tornou-se evidente para todos que não era a mão invisível dos mercados que nos ia salvar, mas que era antes o Estado, o mais frio de todos os monstros frios, no dizer de Nietzsche, que poderia fazer alguma coisa por nós..E fez. Bem ou mal, convictos ou em negação, muitas vezes mais em cacofonia do que em solidariedade, os Estados foram assumindo responsabilidades e construindo respostas. Até a União Europeia conseguiu moderar temporariamente o apetite voraz dos chamados "frugais" pelos juros da dívida futura e abrir caminho para a criação de novos mecanismos de cooperação. Como em todas as grandes crises, não foi através da fábula das abelhas de Mandeville (cada um prossegue o seu interesse privado e é na conjugação desses interesses que se estabelece o interesse comum) que se pôde enfrentar a situação, mas sim através dos meios, militares ou financeiros, materiais ou humanos, de que um Estado ou um conjunto de Estados possa dispor..Se, como defendia a Sra. Thatcher, não existisse such a thing as a society, o mundo seria para os vírus e não para nós..Mas porque parece que vamos passar a viver numa liberdade condicionada a que chamam o novo normal, é preciso que os Estados não esqueçam até que ponto estão a desfigurar e a desnaturar a vida humana com a aplicação cega das regras sanitárias. A revolta decorrente dessa situação antinatural, em que só a aglomeração no trabalho é legítima e é ilícita a festa, irá constituir um perigosíssimo risco para a coesão social, que não pode ser subestimado..Só se pode desejar que, como achava Descartes com algum otimismo, o bom senso seja realmente a qualidade mais bem partilhada pelas gentes..Escritor e diplomata