Dez anos depois do primeiro desaire, o Canadá perdeu pela segunda vez a hipótese de se sentar à mesa do Conselho de Segurança das Nações Unidas, num revés para o primeiro-ministro Justin Trudeau. O liberal, eleito em 2015 e reeleito em 2019, tinha estabelecido o regresso a um dos lugares de membro não permanente como a principal prioridade em política internacional..É à mesa do Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde além dos cinco membros permanentes (EUA, China, Rússia, Reino Unido e França) há espaço para dez membros não permanentes eleitos por mandatos de dois anos, que as grandes decisões são tomadas. Este órgão pode autorizar as missões de paz, impor sanções internacionais e determinar a resposta da ONU aos vários conflitos em redor do mundo.."Acesso, relevância e influência" são as três coisas que um país consegue ao ser eleito, segundo o professor de Estudos de Defesa no Real Colégio Militar do Canadá, Adam Chapnik. "Durante dois anos, todos os dias, um país que não é uma grande potência terá acesso direto aos cinco membros permanentes", disse à BBC. E aqueles que não têm esse acesso, de repente aproximam-se dos que o têm.."Muitos de vocês têm-se preocupado por o Canadá ter perdido a sua voz compassiva e construtiva no mundo nos últimos 10 anos", disse Trudeau após ser eleito, em 2015. "Bom, tenho uma mensagem simples para vocês: em nome dos 35 milhões de canadianos, estamos de volta", acrescentou, prometendo o regresso do país ao palco internacional após o governo conservador, mais desconfiado de órgãos como o Conselho de Segurança da ONU..Celine Dion vs. U2.Trudeau envolveu-se pessoalmente na campanha, que incluiu um concerto de Celine Dion para os diplomatas em Nova Iorque no ano passado. Mas perdeu por 20 votos para Bono Vox e os U2, chamados pela Irlanda para esta guerra diplomática ainda em 2018. E para a Noruega, que acabou por ser o mais votado no grupo da Europa Ocidental e Outros com 130 votos. Os dois países já tinham entrado na corrida (junto com San Marino que entretanto desistiu) quando Trudeau anunciou em 2016 o interesse do Canadá em participar na eleição deste ano..Após a derrota, o primeiro-ministro canadiano felicitou os países eleitos. "À medida que seguimos em frente, o Canadá continua comprometido a trabalhar com os nossos parceiros para promover a igualdade de género, manter a paz, lutar contra as alterações climáticas e melhorar a segurança económica", escreveu no Twitter, partilhando um comunicado onde defende também o reforço do multilateralismo..No total, o Canadá terá gasto 1,74 milhões de dólares (1,5 milhões de euros) na campanha, empregando uma equipa de 13 pessoas a tempo inteiro. Na quarta-feira, conseguiu apenas 108 votos, com a Irlanda a chegar aos 128 votos mínimos (o equivalente a dois terços da Assembleia Geral) para ser eleita à primeira volta. Os irlandeses já tinham gasto, no final do ano passado, 800 mil dólares (713 mil euros) na sua campanha, e a Noruega mais de 2,8 milhões de dólares (2,5 milhões de euros).."Conseguimos!", congratulou-se o primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, no Twitter, felicitando a sua equipa. A chefe do governo norueguês, Erna Solberg, também festejou a vitória na mesma rede social. Durante a campanha, ao "estamos de volta" de Trudeau, a Noruega respondeu com um "nunca nos fomos embora"..A Índia, que não tinha adversários, foi eleita pela Ásia e o México, também sem oponentes, pela América Latina. África, que habitualmente apresenta um só candidato saído da reunião da União Africana, assistiu a uma disputa inédita entre Quénia e Djibuti, tendo sido necessária uma segunda votação para que os quenianos conquistassem um lugar a partir de janeiro no Conselho de Segurança da ONU..Os dez membros não permanentes incluem, além dos dois do grupo da Europa Ocidental e Outros, cinco países da Ásia ou de África, dois latino-americanos e um da Europa de Leste..Portugal venceu há 10 anos.Desde a criação da ONU, em 1945, no rescaldo da II Guerra Mundial, o Canadá já ocupou um dos lugares não permanentes em seis ocasiões. Orgulhava-se de o fazer uma vez por década. Mas, há 20 anos (desde 1999-2000) que não consegue um lugar à mesa, tendo perdido em 2010 para Portugal - a Alemanha conseguiu o outro lugar..Portugal ganhou fazendo campanha contra Canadá e Alemanha, ambos membros do G20, alegando que fazia parte do grupo dos G-172 (como escreveu o atual ministro da Defesa João Gomes Cravinho, que foi secretário de Estado Negócios Estrangeiros e Cooperação entre 2005 e 2011). Apostou ainda na ideia de rotatividade e numa forte presença em vários organismos regionais, entre outros temas..Segundo Chapnik, num artigo de janeiro publicado pelo Instituto Canadiano de Assuntos Globais, "os portugueses lideraram uma campanha superior que explicitamente desencorajou os votos no Canadá. Esta tática era fora do comum e aparentemente efetiva"..Na altura, a oposição liberal culpou o então governo conservador de Stephen Harper pelo embaraço de perder para um pequeno país que atravessava uma crise económica, considerando que tal se devia à incapacidade que ele tinha de se envolver ativamente com os outros e às suas políticas externas (de apoio a Israel, por exemplo, que lhe teria custado o apoio entre países da Organização para a Cooperação Islâmica)..Antes da eleição de quarta-feira, os conservadores canadianos já se preparavam para argumentar que a vitória do Canadá se deveria ao facto de o governo liberal ter menos princípios do que os antecessores conservadores. Mas, na realidade, Trudeau perdeu com ainda menos votos que Harper (que tinha conseguido 114 votos na primeira ronda).."O fracasso de Justin Trudeau em garantir um assento no Conselho de Segurança da ONU é a cereja embaraçosa no topo de uma montanha de desastres da política externa", escreveu o líder da oposição, Andrew Scheer, no Twitter..No seu artigo, Chapnik alega ainda que Trudeau escolheu o momento errado para concorrer, pressionado pelo desejo de fazer o anúncio do interesse canadiano (noutras ocasiões eram alguém do Ministério dos Negócios Estrangeiros que o fazia, mas em 2016 foi o próprio primeiro-ministro), fazer campanha, ganhar e estar no governo quando chegasse a altura de estar no Conselho de Segurança. A última vez que tal tinha acontecido fora na década de 1950. "O desejo partidário de uma vitória nas eleições superava as melhores práticas diplomáticas e prudentes", escreveu este especialista. .Razões para a derrota?.Em primeiro lugar, o Canadá entrou tarde na corrida, quando outros países já tinham declarado o seu apoio aos adversários diretos, Irlanda e Noruega. E andou preocupado com o vizinho a sul, os EUA, e a renegociação do acordo de livre comércio, só se tendo focado na campanha nos últimos meses..Além disso, apesar de ser famoso em todo o mundo (foi capa da revista Rolling Stone), Trudeau tem tido choques com países como a China ou a Arábia Saudita, com aliados capazes de virar as contas contra o Canadá (Pequim tem investimentos em mais de meia centena de países africanos, por exemplo). E não tem uma política de ajuda externa tão grande como os rivais..O Canadá era ainda alvo de uma campanha negativa da parte de grupos ligados à Palestina - com o hashtag #NoUNSC4Canada nas redes sociais. Num artigo publicado no site no canal árabe Al Jazeera, o advogado e ativista dos Direitos Humanos Jonathan Kuttab escreveu que, durante anos, o Canadá foi considerado o campeão dos direitos humanos e da lei internacional, assim como defensor dos direitos dos oprimidos e apoiante das organizações de refugiados..Mas tudo mudou durante o governo conservador de Harper e que Trudeau, apesar das expectativas em contrário, não reverteu a situação. Em causa está a Palestina, com o argumento de que só em uma ocasião o país votou a favor de uma resolução pró-Palestina na Assembleia Geral e criticando a ligação a Israel. De nada serviu que, em novembro, o Canadá tenha ficado do lado dos palestinianos apoiando o seu direito à autodeterminação..As portas abertas aos refugiados políticos de todo o mundo podem também não ser um bom cartão-de-visita para os países de onde eles fugiram. A Arábia Saudita, por exemplo, não ficou contente quando a então chefe da diplomacia (e atual vice-primeira-ministra), Chrystia Freeland escreveu uma mensagem no Twitter a exigir a libertação imediata de vários ativistas de direitos humanos, incluindo o bloguer Rafi Badawi (cuja mulher e filhos vivem no Canadá), condenado em 2013 por "insultar o Islão" e a sua irmã Samar Badawi (detida em 2018)..Em resposta, a Arábia Saudita acusou o Canadá de ingerência interna e expulsou o embaixador canadiano, suspendeu as trocas comerciais (exceto petróleo, sendo o segundo maior parceiro no Médio Oriente) e cancelou as bolsas de estudo para milhares de estudantes sauditas no país. O Canadá também levantou a voz contra a Arábia Saudita após a morte do jornalista Jamal Khashoggi mas, apesar de uma moratória à venda de armas para o país, terá vendido mais armas do que nunca em 2019 (Alemanha e Suécia, por exemplo, cancelaram os negócios que tinham com os sauditas)..Com a China, os problemas complicaram-se com a detenção da diretora financeira da Huawei, Meng Wanzhou (filha do diretor da empresa, Ren Zhengfei), em dezembro de 2018 em resposta a um pedido de extradição dos EUA, onde é acusada de violar o embargo ao Irão. Apesar das repetidas indicações do primeiro-ministro de que os tribunais canadianos são independentes, a China acusa o Canadá de cumplicidade. Em resposta, Pequim deteve dois canadianos, Michael Kovrig e Michael Spavor, acusando-os de espionagem..Há ainda quem alegue que Trudeau fala muito na ideia de "o Canadá está de volta" e serve como defensor do multilateralismo, mas não acompanha isso com ações. Durante a campanha de 2015, por exemplo, falou na aposta nas tradicionais operações de paz, mas contribuiu apenas de forma limitada para a missão do Mali. O número total de capacetes-azuis destacados este ano será o mais baixo nos últimos 60 anos, segundo a estação de televisão canadiana Global News..Num artigo de opinião neste mesmo site, o jornalista Mathew Fischer, há mais de três décadas correspondente internacional, escreve também que: "À exceção das alterações climáticas, o Canadá tem uma agenda diferente de qualquer outro país do mundo. As suas prioridades incluem o feminismo, a igualdade de género e os direitos dos povos indígenas. Como Trudeau descobriu no G7 em Tadoussac há dois anos e quando foi à China em 2017, por muito populares que os seus temas possam ser entre alguns canadianos, eles costumam merecer pouca atenção no estrangeiro.".E acrescentou: "Grande parte da arte de vender do Canadá centrou-se na marca pessoal de Trudeau. Mas esta é uma faca de dois gumes. Por muita capacidade de interação que possa ter, os membros das Nações Unidas não se devem ter esquecido do seu drama com roupas tradicionais indianas, de que pintou a cara de negro em festas [blackface] ou da irritação que causou quando deixou os líderes do Japão e da Austrália e não apareceu numa reunião chave no Vietname."