Numa farmácia em Sintra, o proprietário descolava vinhetas de receitas médicas prescritas em papel, depois de as aviar e receber o valor da venda. Estas vinhetas eram de seguida colocadas em receitas falsas passadas por seis médicos e envolviam medicamentos comparticipados a 100% pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Os remédios eram sobretudo destinados a doenças psiquiátricas, neurológicas e asma, os mais caros, com algumas receitas a ultrapassar os cinco mil euros. No total, causaram um prejuízo ao Estado, avaliado pela Polícia Judiciária (PJ), em um milhão de euros..O esquema foi desmantelado pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção, no ano passado, e ficou conhecido como Operação Antídoto. Além dos seis médicos e do farmacêutico estavam ainda envolvidas outras cinco pessoas, entre os 49 e os 79 anos. Estão acusados de corrupção, burla qualificada, falsificação de documentos e associação criminosa num processo que decorre no Departamento de Investigação e Ação Penal de Sintra. Esta foi a maior operação na área da saúde em 2019, ano em que o número de detenções e de arguidos envolvidos em processos de fraude contra o SNS voltou a aumentar..Foram feitas 11 detenções, mais nove do que em 2018 e mais seis do que em 2017. Foram constituídos 101 arguidos no âmbito destes processos, quando no ano anterior tinham sido 69, de acordo com os dados disponibilizados ao DN pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ. Segundo o inspetor-chefe Afonso Sales, coordenador desta equipa, as operações de fiscalização do SNS estão a aumentar, depois de anos a viver sob o efeito preventivo da criação de um acordo entre a polícia e as autoridades de saúde para fiscalizar em tempo real a fraude no sistema de saúde. Entre 2010 e 2014, foram realizadas diversas operações neste âmbito e abertos vários processos criminais; depois disso o número de detenções e de buscas começou a diminuir até ao ano passado..Fraudes no SNS Infogram.Durante as investigações, a PJ encontrou, além de receitas falsas, medicamentos prescritos em excesso para beneficiar laboratórios farmacêuticos, branqueamento de capitais, tráfico de estupefacientes através de redes de "devoluções de fármacos", indevidamente registados para poderem ser revendidos noutros países onde são mais lucrativos, provocando ruturas de stocks no mercado nacional. Atestados médicos falsos, apropriação de cheques-dentista e utilização de nomes de centenas de utentes em esquemas fraudulentos..Atualmente, estão pendentes 23 processos e a última operação aconteceu no final de janeiro. Um profissional de saúde de 65 anos foi detido em flagrante delito por emissão de atestados médicos falsos e prescrição de receitas 100% comparticipadas pelo SNS para aquisição de hormonas de crescimento. Há dez arguidos envolvidos e os medicamentos foram apreendidos, numa investigação que contou com o apoio do Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e do Ministério da Saúde..O combate à fraude.O alerta para a necessidade de investigar este género de crimes surgiu em 2010, quando o Ministério da Saúde encomendou um estudo sobre os custos imputados ao Estado em medicamentos de ambulatório e "começou a ver-se que havia uma despesa muito maior em certas cidades, como Vila Real ou Castelo Branco, que coincidiam com sítios onde havia esquemas", explica o inspetor-chefe Afonso Sales. "Não havia crime mais perfeito e tão lucrativo.".Depois disso, a tutela sentou-se à mesa com a polícia para traçarem um plano de combate à corrupção, que envolvia o apoio de todas as autoridades de saúde, nacionais e regionais, e uma formação constante sobre os procedimentos usados na saúde aos agentes a trabalhar nesta área. "Começámos a investigar a corrupção como se investiga o tráfico de droga e Portugal foi pioneiro nesta estratégia ligada à saúde. Chegámos a enviar informação sobre a forma como trabalhamos para outros países", lembra o coordenador da Unidade Nacional de Combate à Corrupção..Atualmente, existem 74 inspetores a trabalhar na área da fiscalização da saúde, em colaboração com o Departamento de Investigação e Ação Penal, para fazer cumprir o decreto-lei n.º 96/2017, que define os crimes fiscais contra o sistema de saúde como uma das prioridades da política criminal. Se antes as queixas que recebiam de fraude no SNS aconteciam por via Administração Central do Sistema de Saúde ou de uma das administrações regionais, agora são quase todas feitas diretamente à polícia, indica Afonso Sales. A pista para a Operação Antídoto foi entregue num piquete da polícia..Nove anos de prisão por roubar quatro milhões ao SNS.O primeiro grande caso desta equipa foi a mediática Operação Remédio Santo, em 2012, que envolveu 500 médicos. Acusadas de associação criminosa, burla qualificada, falsificação de documentos, em 2014, 13 pessoas foram condenadas a penas de prisão até nove anos, houve ainda três penas suspensas e duas absolvições. Entre os 18 arguidos, acusados de burlar o SNS em quatro milhões de euros, estavam seis médicos, dois farmacêuticos e sete delegados de informação médica..No mesmo ano em que começou a Operação Remédio Santo (2012), seguiram-se as operações Esquizofarma, SOS Farmácias e Remédio Santo 2. Estas investigações resultaram, neste ano, numa poupança para o Estado de 151,8 milhões de euros, que foram reinvestidos no SNS. "Poupámos, no tempo do ministro Paulo Macedo, o equivalente ao que era preciso cortar no Orçamento do Estado para a saúde", diz o inspetor-chefe Afonso Sales.