Registo Notarial de Toupeiras
Tinker Tailor Soldier Spy, a série de 1979 que permanece a melhor adaptação de Le Carré e um dos melhores produtos da BBC, começa com quatro homens a entrar, à vez, numa sala de reuniões. Um deles fuma um cigarro, outro acende um cachimbo, um terceiro baloiça precariamente um pires em cima de uma chávena (para manter quente uma qualquer mistela). Todos se sentam à mesa. Dois deles abrem dossiês e folheiam papéis. O fumo adensa-se. Ninguém diz uma palavra durante dois minutos, e o silêncio - como em muitos momentos ao longo dos sete episódios - permite ao espectador apreciar o cenário.
Tudo tem aspecto dos anos de 70, embora menos aspecto dos anos 70 do que qualquer série contemporânea cuja acção se passe nos anos 70. O retrofetichismo funciona essencialmente como um instrumento para calibrar expectativas: reduz um período aos seus momentos estéticos mais extremos e transforma essa síntese numa pseudomemória das suas propriedades gerais. É um modo de fornecer estilos a um mercado que prefere as novidades familiares. Tinker Tailor é demasiado dos anos 70 para parecer realmente dos anos 70, e precisamos de algum tempo para reconhecer quão feios são os adereços. Os valores de produção actuais (a atenção ao pormenor, os exércitos de consultores) eliminam essa necessidade; a apreensão é automática porque tudo foi meticulosamente posicionado para ser apreendido como feio, e dos anos 70. Aqui, o mobiliário monótono, o papel de parede pálido, os radiadores lascados e as cortinas hediondas só se insinuam gradualmente. Mas temos tempo, pois felizmente nada acontece.
Elogiada com frequência (e com toda a justiça) como a melhor série de sempre sobre espionagem, Tinker Tailor é também a melhor série de sempre sobre aborrecimento - ou, pelo menos, a melhor série de sempre composta quase exclusivamente de momentos de aborrecimento sem nunca se tornar ela própria aborrecida. O primeiro episódio mostra-nos um velho a descalçar os sapatos e a secar as meias; uma longa viagem de carro à chuva; uma segunda, e ainda maior, viagem de carro à chuva, em que os interlocutores fazem perguntas análogas a "então como vai o emprego?" ou "então como vai a família". Conhecemos o protagonista, Smiley, em pleno processo de ser aborrecido de morte por um ex-colega de trabalho: um homem que nunca se cala e nunca diz nada de interessante e o mantém refém do seu tédio durante um jantar inteiro. Os episódios seguintes, com algumas excepções (há uma passagem extensa por Lisboa), concentram a acção em salas pequenas, com pessoas a conversar, ou a ver empates do Ipswich em televisores a preto e branco ou, melhor ainda, a ler papéis. A dada altura, enquanto vira lentamente as páginas de um dossiê enorme, Smiley entoa em voz alta, e muito devagar, a seguinte frase: "Estimativas Orçamentais Suplementares para o Secretário do Tesouro..."
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A "vida de espião", pelo menos no universo da série, é isto. Numa das tais longas viagens à chuva, o carro pára imenso tempo à beira da estrada. A razão não é explicada, mas percebemos tratar-se de um qualquer procedimento de segurança, para jogar pelo seguro; e percebemos também, caso não fosse claro até aí, que grande parte da actividade é dissipada nos momentos de espera exigidos pelas inúmeras redundâncias processuais. Não admira que fumem tanto; entre muitas outras funções, os cigarros são maneiras de medir o tempo que se passa a perder tempo.
Há em tudo isto uma fidelidade comovente às intenções originais de Le Carré, que nunca escondeu o desejo de desmistificar a profissão, desconstruindo o arquétipo implantado na imaginação popular pelos livros (e respectiva franchise cinematográfica) de Ian Fleming: o espião enquanto aventureiro turístico e playboy internacional. O que se destaca nos seus melhores livros, e a série faz por preservar, é a dedicação infatigável a essa tarefa de contra-ataque, que procede quase como paródia invertida. "Tom" e "atmosfera" são arregimentados ao serviço da causa e prontamente desmultiplicados em cinquenta sombras de cinzento. Tudo é esquálido, deprimente, crepuscular. James Bond pede martínis num casino na Riviera; Alec Leamas (de O Espião Que Saiu do Frio) compra vinho barato numa mercearia de Bayswater. Sean Connery conduz um Aston-Martin; Alec Guinness apanha o autocarro. E enquanto Bond ia para a cama com todas as mulheres, Smiley (míope, rechonchudo) é casado com uma mulher que vai para a cama com todos os homens - excepto com ele. (Só há uma coisa que acontece com mais frequência na série do que o acender de um cigarro: alguém a perguntar delicadamente a Smiley como vai a esposa.) O Smiley das obras posteriores denuncia um autor demasiado impressionado com a sua criação, ou pelo menos demasiado rendido à sua contramitologia para se recordar o propósito original. Quando chegamos a Smiley's People ou The Secret Pilgrim, o anti-Bond já é universalmente reconhecido como o mais sábio e eficaz espião à face da Terra; caloiros estremecem de orgulho ao apertar-lhe a mão; polícias confessam-lhe comovidamente que um dia vão contar aos netos que o conheceram.
A adaptação mantém essa tendência controlada, bem como outro hábito nocivo partilhado por várias personagens dos livros: exercícios espontâneos de eduardo-lourencismo, reflectindo em voz alta sobre qual é a verdadeira alma da Inglaterra, ou o verdadeiro significado do Ocidente. Mais do que tratá-los como diagnósticos precisos ou sequer interessantes, a série parece interessada em dramatizar as próprias tentativas de diagnóstico como aquilo que são: mais "lendas" criadas para camuflar algo mais incómodo. "Acredito que os serviços secretos são a única expressão genuína do carácter de uma nação" é insignificante enquanto aforismo, mas reveladora do colossal aborrecimento de quem a diz (o "vilão" capturado da série, no derradeiro episódio). As suas motivações, como as de qualquer outra personagem, há muito deixaram de ser ideológicas, para passarem a ser apenas pessoais e profissionais. E o aborrecimento com o trabalho (e o medo associado de deixar de trabalhar) é uma motivação profunda.
A novidade mais desconcertante do enredo labiríntico não é a revelação final sobre a identidade do agente duplo, mas sim a pouca importância que tudo aquilo teve, e a pouca diferença que fez. O circo de espiões é revelado como pouco mais que um asilo funcional para as sobras da antiga linha de montagem da elite administrativa imperial, reduzida a espaços cada vez mais exíguos e a funções cada vez mais irrelevantes. A espionagem transformou-se num mero jogo, não porque não existam consequências mas porque as consequências têm uma dissonância tão grande com a vasta burocracia que a sustenta, em que a acumulação de orçamentos, horários e papelada se tornou a sua própria justificação. Portanto, a espionagem fez as coisas que a espionagem faz, e a contra-espionagem fez as coisas que a contra-espionagem faz, e o resultado final foi uma mera curiosidade de arquivo, com algumas vítimas pelo caminho. E cinco horas perfeitas de televisão.
Escreve de acordo com a antiga ortografia