De que se faz a verdade? A pergunta pressupõe uma dúvida que não foi inventada pela candura naturalista dos ecrãs que usamos e contemplamos (incluindo na frágil intimidade do nosso telemóvel). A sua simples formulação acompanha-nos há milénios, como um assombramento feliz: a fixação de uma verdade pode ser posta em causa pela verdade seguinte. O que, convenhamos, não justifica grandes lamentações - chama-se a isso a arte de conhecer..Veja-se o novíssimo filme de David Fincher, Mank (Netflix). Estamos perante uma prodigiosa revisitação desse mistério que envolve as convulsões da verdade e do conhecimento. Por razões que começam, como é óbvio, no seu dispositivo cinéfilo: este é um apaixonado reencontro com as memórias do próprio cinema, numa paisagem em que verdade objetiva e verdade mitológica são duas faces da mesma moeda..Fincher fixa-se na figura de Mank, o admirável Herman J. Mankiewicz (1897-1953), argumentista do clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. E não é a menor maravilha do filme que a personagem, composta em tom de metódico delírio por Gary Oldman, viva do desejo visceral da escrita. Para lá da sua dependência do álcool, através da atribulada relação com Welles, prevalece o amor primordial pela palavra escrita como matéria orgânica do cinema, invertendo o lugar-comum: nenhuma imagem vale mais do que uma palavra..Fincher herdou o argumento de Mank de seu pai, Jack Fincher (1930-2003), tendo alimentado o desejo de o filmar desde finais da década de 1980, quando era "apenas" um brilhante realizador de telediscos, tendo dirigido, por exemplo, o revolucionário Express Yourself (1989), de Madonna. A sua primeira longa-metragem, Alien 3, surgiu em 1992..Dir-se-ia que a demorada concretização do projeto levou Fincher a assumir até às últimas consequências a condição de herdeiro de Welles. Não de acordo com a lógica banal do discípulo que "copia" o mestre, antes para enfrentar o desafio mais linear, porventura também o mais difícil. A saber: qual a verdade que ele me legou?.Há um momento sublime de Mank que, creio, pode ajudar a conhecer o misto de precisão histórica e vertigem poética que define a visão de Fincher. Para o descrevermos necessitamos de evocar uma cena emblemática, filmada por Welles em Citizen Kane..Assim, na investigação jornalística que se segue à morte de Charles Foster Kane (Orson Welles), há, a certa altura, uma conversa com o fiel Mr. Bernstein, empregado do jornal de Kane, The Inquirer. Ao ser-lhe pedido que recorde factos da vida de Kane, Bernstein, interpretado pelo maravilhoso Everett Sloane, responde em tom muito pessoal: "Uma pessoa lembra-se de muitas coisas que poderíamos pensar que nunca se lembraria. Veja o meu caso. Um dia, em 1896, fazia a travessia de barco a caminho de Jersey; quando estávamos a partir, havia outro barco a chegar e nele estava uma rapariga à espera para sair. Tinha um vestido branco. Trazia uma sombrinha branca. Vi-a apenas por um segundo. Ela nem sequer me viu, mas aposto que desde então não se passou um mês que eu não tenha pensado nessa rapariga.".A evocação desta cena de Citizen Kane está em Mank através de uma referência da personagem de Mankiewicz. Que acontece, então? Num fogacho, Fincher dá-nos a ver uma jovem vestida de branco, com uma sombrinha branca, no cenário de um barco... E é importante referir que se trata de um cenário, uma vez que nos são mostrados os artifícios técnicos do estúdio..A verdade visceral da cena enraíza-se num delicado jogo de espelhos. Não se trata, como é óbvio, de compensar aquilo que Welles não filmou: a "amostragem" da memória de Bernstein iria reduzi-la a um detalhe pitoresco. Trata-se, isso sim, de reconhecer que os filmes podem falar entre si, e não apenas por motivos "temáticos". O que Mank coloca em cena é o próprio desejo que a verdade transporta, como se a utopia de Bernstein tivesse vivido oito décadas de pudor, aguardando que Fincher encontrasse a imagem da sua própria vulnerabilidade. É a coisa mais bela que neste ano vi num filme..E Bernstein tinha razão: dura apenas um segundo.