Coronavírus e estado de emergência. Um Conselho de Estado para "mobilizar" Costa
Face às reservas que António Costa tem manifestado em relação à decisão de ser decretado o estado de emergência, o Presidente da República, que quer avançar, convocou o Conselho de Estado, procurando assim dar mais lastro político a esta decisão - a mais dramática do seu mandato.
Isto explica, em si mesmo, a convocação deste órgão - cuja reunião, aliás, decorrerá por videoconferência, sem presença física dos conselheiros no Palácio de Belém (exceto do próprio PR). Marcelo poderia avançar para o estado de emergência - que depois ainda carecerá de aprovação parlamentar - sem ouvir os conselheiros. Mas precisa de o fazer visto que tem em António Costa um notório renitente.
"As pessoas não têm bem a consciência do que é o estado de emergência. Tenho tentado explicar - e sinto que as pessoas responsável e voluntariamente têm confinado os seus movimentos - que mesmo sem estado de emergência, no tal estado de calamidade, é possível impor de uma forma mais generalizada essas restrições", disse o chefe do governo na segunda-feira, entrevistado na SIC. Mas não estará só em causa decretar o estado de emergência.
Estará em causa decidir que estado de emergência será exatamente aplicado - e Marcelo e Costa negociaram o âmbito da medida, que depois terá de ser aprovada no Parlamento.
A lei é clara: a resolução da Assembleia da República que dará sequência à decisão presidencial terá de determinar o âmbito territorial, a duração, a especificação dos direitos, liberdades e garantias que ficam suspensas ou restringidas. E a determinação do grau de reforço dos poderes das autoridades administrativas civis - por exemplo autoridades de saúde - e do apoio das Forças Armadas. No Conselho de Estado, António Costa terá assim oportunidade para defender qual será, no seu entender, o melhor alcance da medida. Ao fim da tarde, depois de o Parlamento reunir, o Presidente fará uma comunicação ao país.
Já no Parlamento, não restam dúvidas: a resolução tem tudo para ser aprovada por uma forte maioria que incluirá pelo menos PS, PSD, BE e CDS. Quanto aos restantes, sabe-se que o PCP, a IL e o Chega estão com reservas.
Antes, porém, os deputados discutirão uma proposta do governo que, no fundo, dará respaldo legal ao decreto do Conselho de Ministros em que se determinou, por exemplo, o fecho das escolas e um "regime excecional em matéria de contratação pública e realização de despesa pública, bem como em matéria de recursos humanos, conciliando a celeridade procedimental exigida com a defesa dos interesses do Estado e a rigorosa transparência nos gastos públicos".
A proposta que hoje será discutida na AR admite que "a urgência na aprovação do aludido decreto-lei levou à consagração de medidas que podem ser interpretadas como integrando matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República" - daí a necessidade agora de uma aprovação parlamentar.
Mas às várias medidas já aprovadas no tal primeiro decreto acrescenta uma outra: "Aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos, procedimentos, atos e diligências que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios, aplica-se o regime das férias judiciais."
Os conselheiros de Estado costumam ser muito reservados sobre as matérias que vão a discussão no órgão de consulta do Presidente da República. Mas como a pandemia do covid-19 atinge em cheio toda a comunidade há quem já se tenha pronunciado publicamente sobre o assunto. É o caso dos presidentes dos governos regionais da Madeira e dos Açores, membros daquele órgão com assento por inerência, e que têm defendido medidas muito restritivas para as regiões autónomas e é provável que possam ser partidários da declaração do estado de emergência.
O presidente do Governo Regional da Madeira já defendeu que não é o momento para discutir a inconstitucionalidade das medidas para combater o covid-19 e pediu antecipadamente a intervenção do Presidente da República para encerrar os aeroportos da região.
O presidente do governo regional Vasco Cordeiro enviou uma carta ao primeiro-ministro, a solicitar "a suspensão urgente das ligações aéreas do exterior, incluindo do território nacional, com os aeroportos dos Açores, com exceção do transporte de carga e casos de força maior, desde que autorizados pela competente autoridade de saúde". Sem se ter pronunciado expressamente sobre a eventualidade da declaração do estado de emergência percebe-se que também poderá vir a apoiar o Presidente nesta decisão, que também salvaguardaria mais os acessos às ilhas da região.
Mais claro foi o conselheiro Marques Mendes, que foi escolhido para integrar o Conselho de Estado na quota do Presidente da República, ao admitir como "inevitável" que a decisão de declarar estado de emergência ou quarentena obrigatória. No seu habitual comentário na SIC, no domingo passado, o antigo líder do PSD lembrou que "nunca aconteceu, é uma medida de estado de guerra mas nós, na prática, vivemos um estado de guerra. É um pedido do Presidente [da República] que tem de consultar o governo, e isso traduz-se em limitar as liberdades, sobretudo de circulação. E as medidas são obrigatórias: é um mal necessário. E, por último, só pode ser tomada por 15 dias".
Rui Rio, que é um dos conselheiros eleitos para o órgão de consulta presidencial pelo Parlamento, também declarou no Twitter que estará pronto a dar o seu apoio ao governopara "escalar as medidas de combate ao covid-19, incluindo a declaração do estado de emergência".
Dos restantes membros do conselho nada se sabe, incluindo a opinião dos ex-presidentes da República, que o integram por inerência. Conhecem-se apenas posições dos respetivos partidos. Domingos Abrantes, por exemplo, está no Conselho de Estado em nome do PCP - e os comunistas já fizeram saber que não são muito adeptos da ideia (Jorge Pires, dirigente do partido, disse ontem em conferência de imprensa que o melhor seria esperar para ver o que dão as atuais medidas).
O Conselho de Estado integra também o fundador e ex-líder do BE Francisco Louçã - e o Bloco disse que vê o estado de emergência com bons olhos, mas sobretudo para que o Estado possa intervir em áreas económicas (Catarina Martins tem vindo a insistir na ideia de que o foverno deveria decretar "requisição civil" aos hospitais privados, colocando-os ao serviço do SNS).
São 19 os membros do órgão consultivo do Presidente da República, entre inerências, escolhas de Marcelo Rebelo de Sousa e eleitos pela Assembleia da República, depois de nomeados pelos partidos.
Os inerentes são: António Costa (primeiro-ministro), Manuel da Costa Andrade (presidente do Tribunal Constitucional), Maria Lúcia Amaral (provedora de Justiça), Vasco Cordeiro (presidente do Governo Regional dos Açores), Miguel Albuquerque (presidente do Governo Regional da Madeira) e os ex-Presidentes da República Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva.
Integrados através da quota do Presidente são o antigo líder parlamentar do CDS António Lobo Xavier, o ensaísta Eduardo Lourenço, o antigo líder do PSD Marques Mendes, a antiga ministra da Saúde (e atual presidente da Fundação Champalimaud) Leonor Beleza e o neurocientista António Damásio. Eleitos pelo Parlamento foram Carlos César (presidente do PS), Francisco Pinto Balsemão (empresário e antigo líder do PSD), Rui Rio (líder do PSD), Francisco Louçã (antigo líder do BE) e Domingos Abrantes (um histórico do PCP)
Se o Presidente da República decidir acionar o estado de emergência, após ser ouvido o Conselho de Estado, já sabe que terá o apoio do governo, porque o primeiro-ministro assim o declarou, e do Parlamento. Ferro Rodrigues abriu a porta a que uma decisão desta natureza seja debatida no próprio dia da decisão de Marcelo Rebelo de Sousa - a agenda parlamentar de hoje tem essa opção em aberto.
O estado de emergência é um estado de exceção e só pode ser declarado em casos de grave ameaça ou perturbação da ordem democrática ou de calamidade pública. Há direitos fundamentais que nunca podem ser colocados em causa, nomeadamente, entre outros, os direitos à vida ou à integridade pessoal.
O direito à liberdade, previsto na Constituição portuguesa, pode ser suspenso ao ser acionada esta declaração. Uma ordem de "isolamento" determinada pelas autoridades de saúde para qualquer cidadão teria de ser acatada.
Esta declaração tem de passar pelos três órgãos de soberania, tendo de ser decretado pelo Presidente da República, depois de audição do governo e de uma autorização da Assembleia da República.
O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia defendeu, num artigo publicado no Público, esta figura dada a gravidade da situação. "A solução é assumir a gravidade do assunto e agir em conformidade com as regras constitucionais que existem sobre o estado de emergência, na sua versão de calamidade por epidemia", escreveu.
Defendeu ainda que "o covid-19 nos coloca noutra situação dilemática de preservação da legalidade constitucional num ambiente em que é necessário manter a segurança sanitária dos cidadãos".
Pode. Mas nunca com censura prévia, só a posteriori. O decreto diz que "poderá ser suspenso qualquer tipo de publicações, emissões de rádio e televisão e espetáculos cinematográficos ou teatrais, bem como ser ordenada a apreensão de quaisquer publicações".
A execução da declaração do estado de emergência compete ao governo, que dos respetivos atos manterá informados o Presidente da República e a Assembleia da República.
Pode ser determinada a fixação de residência ou detenção de pessoas com fundamento em violação das normas de segurança em vigor e será sempre comunicada ao juiz de instrução competente, no prazo máximo de 24 horas após a ocorrência, assegurando-se designadamente o direito de habeas corpus.
Quando se estabeleça o condicionamento ou a interdição do trânsito de pessoas e da circulação de veículos, cabe às autoridades assegurar os meios necessários ao cumprimento do disposto na declaração, particularmente no tocante a transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afetados.
Mas os cidadãos cujos direitos, liberdades e garantias tiverem sido violados por declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, ou por providência adotada na sua vigência, ferida de inconstitucionalidade ou ilegalidade, designadamente por privação ilegal ou injustificada da liberdade, têm direito à correspondente indemnização, nos termos gerais.
A suspensão ou a restrição de direitos, liberdades e garantias devem limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade. Não podendo prolongar-se por mais de 15 dias, sem prejuízo de eventual renovação por um ou mais períodos, com igual limite, no caso de subsistência das suas causas determinantes.
A violação do disposto na declaração do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência.
Nesta quarta-feira o dia terminará com o país em estado de emergência. Tal já não se via em Portugal desde o 25 de Novembro de 1975.