Madrugada de 28 de fevereiro de 2014. Grupos armados tomam de assalto os edifícios-chave de Simferopol. A bandeira russa flutua sobre o edifício do Parlamento da Crimeia. Forças especiais russas com uniformes sem insígnias - os famosos "homenzinhos verdes" - controlam numa ação-relâmpago os aeroportos e as vias de comunicação, cercam as unidades militares ucranianas e bloqueiam as saídas dos portos..O líder pró-russo da Ucrânia, Viktor Ianukovitch, cedera enfim, uma semana antes, após três meses de contestação nas ruas e de pressão internacional e um novo governo pró-ocidental preparava-se para tomar posse em Kiev. A rebelião da Crimeia contagia já outras regiões de forte população russa no sul e no leste. Em Donetsk líderes separatistas propõem-se assumir o controlo das Forças Armadas e de segurança. A tensão entre Moscovo e Kiev está ao rubro..A ação russa na Crimeia provoca uma forte reação nas capitais do Ocidente. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, fala de "incrível ato de agressão". Kiev lança um apelo ao auxílio da NATO..A 6 de março, o Parlamento da Crimeia vota a união com a Rússia e convoca um referendo em que a população aprova por esmagadora maioria (97 por cento, segundo os números oficiais) essa união..Dois dias depois, Vladimir Putin defende energicamente a anexação da península numa intervenção perante o Parlamento russo com base em argumentos históricos, políticos e jurídicos. A 18 de março a Crimeia é formalmente integrada na Federação Russa..Conquistada pelo Império Russo em 1783, no reinado de Catarina, a Grande, disputada depois, entre 1853 e 1856, num conflito entre russos e uma coligação de ingleses, franceses e otomanos, integrada em 1956 por Nikita Krutchov na República Soviética da Ucrânia, a Crimeia voltava à jurisdição russa..Washington, Bruxelas e outras capitais ocidentais denunciam a anexação da Crimeia como uma agressão e uma intolerável violação das normas internacionais e assumem o compromisso de defender a integridade territorial da Ucrânia..Os Estados Unidos e a União Europeia impõem um pacote de duras sanções à Rússia, que seriam depois reiteradamente renovadas e alargadas, em particular depois do derrube de um avião da Malaysian Airlines, atingido a 17 de julho por um míssil que os EUA atribuíram às milícias russas no leste da Ucrânia. É a mais grave crise entre a Rússia e o Ocidente desde o colapso da URSS, em dezembro de 1991..Jogos de guerra.O conflito entre a Rússia e a Ucrânia assumiu desde as primeiras manifestações contra Ianukovitch a dimensão de um confronto entre o Ocidente e a Rússia. Deputados europeus estão na Praça Maidan a incentivar os protestos contra o regime pró-russo no poder em Kiev. E Victoria Nuland, subsecretária de Estado norte-americana, assume abertamente um papel decisivo na constituição da equipa que assumiu o poder em Kiev depois da queda de Ianukovitch..A questão da Crimeia está desde o início presente na crise ucraniana e na tensão crescente entre a Rússia e o Ocidente. Moscovo acusa os Estados Unidos de montarem um "golpe de Estado" na Ucrânia. Nos meios políticos da capital russa levanta-se a suspeita de que a NATO se prepararia já para instalar uma base na Crimeia..A Aliança Atlântica anuncia logo no início de março, em plena ação russa na Crimeia, patrulhas aéreas regulares a partir de bases na Polónia e na Roménia para monitorizar a crise ucraniana. Um mês depois os ministros dos Negócios Estrangeiros da NATO reunidos em Bruxelas suspendem a cooperação civil e militar com a Rússia. A Polónia e os Estados do Báltico multiplicam alarmes quanto às intenções da Rússia e exercem forte pressão dentro da NATO. Num breve lapso de tempo, a Aliança Atlântica instala um forte dispositivo militar e multiplica jogos de guerra ao longo das fronteiras russas, do Ártico ao Báltico e ao mar Negro..A partir da Roménia a Aliança controla o movimento dos caças russos nos céus da região. Os navios da NATO intensificam as patrulhas no mar Negro e a Roménia acolheu instalações de defesas antimíssil dos EUA. Ao mesmo tempo a aliança intensifica a cooperação militar com a Geórgia e a Ucrânia. Peritos da NATO treinam tropas ucranianas e a administração Trump forneceu um primeiro lote de mísseis antitanque Javelin e em Washington e Bruxelas defende-se um reforço do abastecimento de armas modernas à Ucrânia..Um incidente naval no estreito de Querche, entre o mar Negro e o mar de Azov, no final de novembro de 2018, agravou ainda a tensão na área. Unidades da Guarda Fronteiriça Russa apresaram dois navios ucranianos que se aproximavam do estreito (que separa a Crimeia do território russo), acusando-os de violarem águas territoriais russas..O apresamento fez correr muita tinta. Kiev denunciou a "agressão" russa, Putin acusou o líder ucraniano Petro Poroshenko de ter provocado deliberadamente o incidente para aumentar a sua popularidade, então em acentuada queda, junto do eleitorado ucraniano..O incidente teve ainda assim consequências imediatas. Donald Trump cancelou um encontro aprazado com Vladimir Putin e a questão do mar Negro voltou a dominar a agenda dos ministros da NATO..Do bom uso da Crimeia.Vladimir Putin terá decerto razões para recordar com alguma saudade o clima de euforia patriótica que saudou a anexação da Crimeia e que lhe valeu um pico de popularidade, com a sua taxa de aprovação junto da opinião pública russa a subir em flecha para os 86 por cento. Cinco anos depois a situação é outra. A queda dos preços do petróleo e o efeito das sanções ocidentais atingiram pesadamente a economia russa, obrigando Putin a uma série de medidas impopulares, entre aumentos de impostos, contenção salarial e um aumento da idade da reforma que fez baixar a cotação do presidente russo junto da população para a casa dos 30 por cento..Em Kiev, a Crimeia tem hoje outros reflexos. O conflito com a Rússia domina naturalmente a agenda política ucraniana. Petro Poroshenko surge em terceiro nas intenções de voto nas eleições para o próximo dia 31. De acordo com sondagens recentes, as preferências do eleitorado ucraniano vão para o comediante Vladimir Zelenski, que anima um programa televisivo que parodia os vícios de uma classe política minada pela corrupção..Uma situação que espelha o aparente desencanto dos ucranianos face às promessas por cumprir da "Revolução da Dignidade" de 2014. A Ucrânia vive uma situação económica difícil, apesar da incerta recuperação dos últimos três anos, e as reformas tipo FMI lançadas por Poroshenko atingiram duramente a população sem produzirem para já os resultados esperados..O presidente Poroshenko é, ele próprio, acusado de corrupção e há quem lhe aponte mesmo o envolvimento em negócios escuros com o arqui-inimigo russo. Em plena queda de popularidade, o presidente ucraniano tem ainda assim trunfos importantes na manga. Para além de contar com o apoio do Ocidente, Poroshenko é, por inerência, o chefe das Forças Armadas do país. A dureza das posições perante a Rússia e o tom belicista que marca muitas das suas intervenções conferem-lhe a aura de primeiro patriota do país e episódios como o incidente do estreito de Querche valeram-lhe mesmo alguma recuperação nas sondagens..A questão da Crimeia e o conflito com a Rússia acabou por abrir uma janela de oportunidade à Ucrânia, valendo-lhe o apoio do Ocidente como elemento de "contenção" da Rússia e fronteira simbólica do Ocidente..Quanto à própria NATO, a anexação da Crimeia e a alegada "mão" russa no conflito no leste da Ucrânia ofereceram à organização um substancial reforço bélico e sobretudo uma importante raison d'être, num momento em que o presidente Donald Trump lançava algumas dúvidas sobre o seu empenhamento na velha Aliança..Nada permite prever para já uma evolução significativa na questão da Crimeia. Nenhum dos três candidatos mais cotados às presidenciais ucranianas dá sinais de disponibilidade para rever os dados da situação, mesmo se Zelenski admitiu já publicamente um diálogo com Putin para tentar resolver os diferendos ucraniano-russos, e que Iulia Timochenko manteve em tempos contactos regulares com o líder do Kremlin..A questão da Crimeia continuará assim a envenenar as relações entre Moscovo e o Ocidente. As expectativas alimentadas em tempos por Putin de que seria possível convencer Trump a rever as sanções à Rússia goraram-se há muito. E a chanceler alemã Angela Merkel repetiu em Kiev, em novembro último, a sua determinação em manter as sanções à Rússia, mesmo se a questão divide os europeus e as sanções convivem com uma cooperação económica em várias áreas. nna UCrãniana