Não há memória na saúde pública moderna de um confinamento e de um desconfinamento massivo como se tem vindo a assistir no mundo inteiro desde o início do ano. O mundo não estava preparado para o novo coronavírus que apareceu na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, no final de dezembro de 2019..Seis meses passados, a comunidade científica assegura que ainda muito pouco se sabe sobre ele e que a pandemia continua a acelerar. Os países avançam e recuam nas suas decisões; técnicos da Organização Mundial da Saúde (OMS) emitem opiniões contrárias sobre o que deve ser feito e sobre o que aí vem. Mas há países que estão mais preparados do que outros. A Nova Zelândia assumiu uma estratégia que é considerada um exemplo até agora. Portugal também começou por o ser, as medidas adotadas para o confinamento tiveram resultados positivos, mas o mesmo já não se pode dizer do desconfinamento. Falhou a estratégia para o desconfinamento; falhou o aconselhamento científico sistemático mais abrangente para a definição dessa estratégia..Nos três artigos que se seguem, os especialistas explicam que não houve uma estratégia que fizesse a transição do modelo do confinamento para o do desconfinamento e que é urgente repensar como se pode reverter a situação para que, quando as escolas abrirem, os serviços de saúde voltarem a receber doentes como recebiam, para quando a sociedade voltar à sua normalidade em pleno, não aconteça o que se receia: um aumento de casos exponencial em algumas regiões ou uma segunda vaga generalizada em todo o país, que poderá trazer consequências bem mais graves, serviços de saúde esgotados e o aumento da mortalidade.."O mundo não sabia como desconfinar", diz ao DN perentoriamente Constantino Sakellarides, professor catedrático jubilado da Universidade Nova de Lisboa, ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), ex-diretor-geral da Saúde e atualmente membro do Conselho Nacional de Saúde Pública. "É normal, nunca o tinha feito", mas "há que agir rapidamente com o que já se aprendeu", salienta..Os argumentos que defende no seu artigo, já os tinha exposto em maio, numa entrevista ao DN, em que concordava que "o confinamento prolongado não era bom para a saúde nem para a economia" e alertava já para a necessidade de haver "uma estratégia para o desconfinamento", a nível de região, concelhos e freguesias para que autoridades e cidadãos pudessem tomar decisões e definir comportamentos..Aranda da Silva, ex-presidente do Infarmed, ex-bastonário dos farmacêuticos e presidente da Fundação para a Saúde, e Victor Ramos, médico de medicina geral e familiar, precursor na reforma dos cuidados primários, que, recebeu o Prémio Miller Guerra, em 2017, pela sua dedicação aos doentes e ao SNS durante mais de 40 anos, alertam neste artigo para o facto de ser "absolutamente decisivo assegurar um planeamento estratégico expedito que maximize e otimize todas as oportunidades e recursos. Um plano estratégico de saúde pública para o controlo da pandemia é indissociável de um plano mais abrangente, que preveja e oriente a atuação sobre os fatores determinantes que influenciam a saúde"..Já Manuel Lopes, professor na Universidade de Évora, ex-coordenador do programa para a Reforma dos Cuidados Continuados Integrados no SNS, sublinha falhas num aconselhamento científico sistemático e mais abrangente que suportasse as decisões políticas. Este especialista defende que tal seja feito por "um organismo multidisciplinar"..Neste momento, Portugal tem 48 077 casos confirmados, 1682 mortes e 32 790 recuperados. De há dois meses para cá que a barreira de novos casos se mantém entre os 250 e mais de 400. A Região de Lisboa e Vale do Tejo é agora a mais afetada, com 19 freguesias dos concelhos de Lisboa, Loures, Odivelas, Amadora e Sintra ainda em estado de calamidade e a meio gás..Nos seus artigos, os especialistas ouvidos pelo DN traçam um caminho e relembram a frase do presidente do Instituto de Medicina dos EUA, Harvey Finneberg, que em 2006, já alertava: "A preparação de um país para enfrentar a pandemia da gripe é boa se for boa a preparação de cada região, concelho ou comunidade.".Descentralizar, diferenciar e comunicar na resposta à covid-19.Constantino Sakellarides.Ao terminar mais uma sessão no Infarmed, a 8 de julho, o Presidente da República incluiu na sua síntese final o seguinte: "É o fim de um ciclo. Este é um modelo que tem de ser ajustado. Ou seja, Portugal vai evoluir de um modelo macro para micro, que incidirá mais sobre os concelhos, as freguesias ou até os bairros." Nada mais acertado. Mas com mais de dois meses de atraso..A resposta à pandemia que levou ao confinamento, em meados de março, foi, inevitavelmente, centralizada, generalizada e normativa, seguindo um modelo de comando central de emergência de saúde pública, obrigando à obediência. Em contraste no "pós-confinamento geral", complexo e prolongado, haveria que descentralizar, diferenciar e promover a decisão informada por parte de todos, incluindo os cidadãos..Esta transição requer uma clara rutura com a forma e o conteúdo da informação assumida durante o confinamento. Já não será a diária e fatigante repetição dos somatórios, médias e acumulativos nacionais, agora de reduzido interesse. Passará, necessariamente, a estar focada na comunicação dos riscos locais de infeção e nas respostas que estes suscitam..H. Bauchner escreve em JAMA, junho 2020: "As perceções e decisões das pessoas em relação ao risco associado à covid-19 dependem, pelo menos, da resposta às perguntas seguintes: como está a transmissão da doença na comunidade onde me movimento? Qual o risco de exposição a essa doença que assumo? Como se responde a essa exposição ao vírus?" Neste contexto, diz a OMS em relação à abertura das escolas - não deve fazer-se se houver transmissão da doença na comunidade onde a escola se situa. Especialmente nesta situação, há que ter consciência da complexidade da comunicação do risco quando estão envolvidos, simultaneamente, vários atores sociais..Um dos melhores exemplos vem da Nova Zelândia, onde, desde há muito, o território é mapeado com quatro níveis de alerta associados à avaliação dos riscos de transmissão da doença: nível 4 (transmissão na comunidade); nível 3 (clusters e transmissão ocasional na comunidade); nível 2 (só clusters); nível 1 (sem transmissão, com o vírus ainda circulando internacionalmente). O foco é claro: saber se existe ou não transmissão num determinado território e se esta se processa na comunidade de uma forma sustentada. Ou seja, se se pode "apanhar" a doença sem saber onde. Esta abordagem tem óbvias vantagens na fase do pós-confinamento geral:.- Põe-se o foco, precocemente, na transmissão da doença, nos riscos inerentes e na diferenciação local e não noutras considerações de lógica menos aparente (calamidade, contingência e alerta). A indisponibilidade para reconhecer a importância da diferenciação local só foi "quebrada" a partir da situação observada na Área Metropolitana de Lisboa..- Faz-se em todo o território nacional - em Portugal, excetuando a situação na região de Lisboa, o país está classificado de forma uniforme como em estado de "alerta". Isto apesar de múltiplos outros focos, como o de Reguengos de Monsaraz, onde há transmissão comunitária..- Uma vez adotada uma "geografia" com base nos níveis de risco, cada um destes níveis tem predeterminadas as respostas necessárias. Isso torna desnecessários dispositivos políticos de decisão para cada novo incidente na evolução epidemiológica. Assim se evitam também atrasos arriscados..- A propósito da resposta de um surto em comunidades contíguas, no norte de Espanha, onde contrasta a resposta pronta em Aragão com o atraso de uma semana na Catalunha, com custos visíveis, comenta Fernando Garcia, da Universidade Pompeu Fabra: "É algo que requer uma dose justa de sensibilidade, músculo e inteligência. Não se podem ir confinando comunidades aos primeiros incidentes observados, mas fazê-lo tarde de mais resulta em situações difíceis de controlar" (El País, 12 de julho 2020)..- A informação centrada no "risco local" permite decisões inteligentes localmente, quando adaptada às múltiplas circunstâncias da comunidade. Decisões inteligentes são boas para a economia. Confinamento excessivo por falta de informação local relevante, não é bom para a saúde nem para a economia..As dificuldades observadas podem também estar relacionadas com um equívoco óbvio - o de se terem confundido, durante demasiado tempo, duas necessidade distintas: por um lado, a da informação e comunicação entre técnicos qualificados e representantes do poder político, iniciativa de mérito indiscutível; por outro, o processo, inexistente, de aconselhamento científico sistemático, transparentemente regulado, independente do poder político, para uma estratégia de saúde pública para "pós-confinamento geral"..Esta é precisamente a altura para refletir sobre estas limitações. Nunca antes, na saúde pública moderna, se confinou e desconfiou massivamente. Há que avaliar e aprender. Tanto mais que estamos no limiar de um novo ciclo de acrescidas dificuldades: a abertura das escolas, as tentativas de regresso das pessoas ao seu SNS e as situações de saúde próprias do outono-inverno..Estratégia de saúde para um futuro próximo.J. Aranda da Silva e Victor Ramos.O Serviço Nacional de Saúde (SNS) cumpriu o seu papel durante o período do impacto inicial da pandemia. Evitou situações trágicas como as ocorridas em alguns países. Mostrou grande resiliência e adaptabilidade e conseguiu responder ao desafio imediato, superando dificuldades acumuladas em recursos humanos e equipamento..A resposta dada foi global, dos cuidados de saúde primários, da rede de saúde pública, dos hospitais, das autarquias, das farmácias e de vários outros setores e esse terá sido um fator decisivo para que a etapa inicial corresse bem..Agora, no período de transição denominado "desconfinamento" tem-se sentido a necessidade de uma estratégia de saúde pública explícita e adequável à complexidade e à multiplicidade de atores, de dinâmicas e de contextos, bem como às várias possibilidades evolutivas locais e gerais da pandemia..A diferenciação das medidas adotadas nas últimas semanas e o seu mapeamento a nível de freguesia têm ocorrido de modo reativo. Haveria vantagem numa antecipação orientadora das medidas a tomar..É, por isso, importante dispor de uma estratégia de saúde pública para 2020-2021 que preveja os diferentes níveis de risco e os associe a intervenções predefinidas sempre que se verifiquem alterações epidemiológicas locais. Isto é, devem estar definidas de modo preciso as medidas a acionar de acordo com o grau de risco..Tendo em conta reflexões já conhecidas a nível nacional e internacional sobre esta matéria, esta estratégia deverá incluir os seguintes aspetos:.1. Níveis de risco de infeção, em termos nacionais, regionais e locais - que permitam predefinir por parte das autoridades as medidas correspondentes a cada nível e aos cidadãos assumir os comportamentos correspondentes à situação epidemiológica a que estão expostos..2. Aspetos específicos de promoção e de proteção da saúde - relativos a grupos populacionais específicos: as crianças que precisam de ir à escola, os jovens que precisam de viver para amadurecer, os que vivem em condições habitacionais, de transporte e emprego particularmente suscetíveis à infeção, os profissionais de saúde em geral e os cuidadores dos mais idosos, os mais idosos e os portadores de múltiplas patologias que precisam de se proteger mas que não podem desistir de viver..3. Resposta às desigualdades sociais - com atenção muito especial aos efeitos do aumento do desemprego e às múltiplas formas de pobreza que irão agravar-se na sociedade portuguesa, com consequências conhecidas na saúde..4. Literacia em saúde, envolvimento da comunidade e das pessoas - entre as seis orientações gerais emitidas pela Organização Mundial da Saúde, consta a seguinte: "That communities are fully educated, engaged and empowered to adjust to the "new norm"." Esta dimensão é indispensável nas respostas às crises de saúde pública..5. Um Serviço Nacional de Saúde para o presente e para o futuro - a resposta do SNS terá de incluir simultaneamente o desafio da covid-19, os cuidados por prestar nos últimos meses, a patologia sazonal própria do outono e do inverno e as transformações necessárias para fazer face às múltiplas questões de saúde, dependência e fragilidade que acompanham o envelhecimento;.6. Saúde pública e economia - com harmonização nas estratégias orçamentais entre as boas contas públicas, o crescimento económico e o bem-estar..7. Faseamento 2020-2021 - acautelando, entre outros aspetos, as variações sazonais e a inovação tecnológica, particularmente no domínio dos medicamentos e das vacinas..A resposta à covid-19 condicionou uma situação crítica no SNS. Os cuidados de saúde, para muitos doentes, ficaram adiados, quer nos cuidados de saúde primários quer a nível hospitalar. Estas situações devem ser revertidas com a máxima celeridade..Estão em discussão pública uma proposta de "Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal" e o orçamento para 2021. O projeto de plano considera que o Estado "deve tratar os serviços públicos, em especial o Serviço Nacional de Saúde, como um investimento e não como um passivo". É o momento para aprofundar e desenvolver a componente da saúde em interligação com os outros componentes estratégicos de planeamento e de investimento..Paralelamente há que ter em conta o Orçamento do Estado e os recursos a disponibilizar pela União Europeia..É absolutamente decisivo assegurar um planeamento estratégico expedito que maximize e otimize todas as oportunidades e recursos. Um plano estratégico de saúde pública para o controlo da pandemia é indissociável de um plano mais abrangente, que preveja e oriente a atuação sobre os fatores determinantes que influenciam a saúde, o desenvolvimento e a adaptação do SNS e do sistema de saúde às realidades que vão surgindo ao longo do tempo. Para a sua concretização conviria responsabilizar uma estrutura permanente do Ministério da Saúde que reúna as competências necessárias e garanta coerência e continuidade de ação ao longo do tempo..Pandemia, conhecimento científico e decisão política.Manuel Lopes.O conhecimento científico tem duas dimensões: o corpo de conhecimento e o processo pelo qual esse corpo é produzido. O processo é longo, controverso e, segundo alguns filósofos da ciência, vive essencialmente do erro, mas é o melhor caminho para o corpo de conhecimentos. Este é o resultado depurado desse longo processo. Apesar disso não é imutável nem isento de contradição e debate. Se assim não fosse não seria ciência..Se da ciência resultassem diretamente decisões políticas seriam essencialmente tecnocráticas. Assim, a decisão política em democracia é de outra natureza, uma vez que resulta do princípio da soberania popular e responde aos anseios e às expectativas da população..Existe, portanto, uma tensão entre decisão política democrática e ciência com a qual precisamos saber viver de maneira responsável. É importante distinguir as respetivas esferas nas quais o raciocínio "político" e o raciocínio "científico" devem prevalecer (Marion, 2020)..Olhando para a atual pandemia a partir desta perspetiva, facilmente percebemos que houve uma tensão permanente entre conhecimento científico e decisão política, com equívocos frequentes. Isso não pode, contudo, pôr em causa a importância desta relação. Frequentemente a evidência científica disponível não permite um juízo incontroverso..É disso exemplo a indecisão do grupo de peritos, convidados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para fazerem parte do seu Comité de Emergência, em declararem emergência em saúde pública, em finais de janeiro..Ao nível europeu, em fevereiro último, três dias antes de explodir a crise em Itália, os peritos do dispositivo consultivo do European Center for Disease Control and Prevention (ECDC) consideraram baixo o risco de propagação do vírus no continente europeu..Em Inglaterra, as críticas ao grupo consultivo do governo neste domínio, veiculadas pelo British Medical Journal e pelo New England Journal of Medicine, centraram-se no facto de aquele grupo não incluir pessoas experientes no desenho de respostas de saúde pública integradas, adequadas a esta situação, para além do facto de, no início, a sua postura ter sido marcadamente conservadora..Na Espanha e na Suécia o processo de decisão foi controverso, ao contrário do que acontece na Alemanha, na Dinamarca e na Nova Zelândia onde tem sido aparentemente pacífico. Mas, em qualquer das circunstâncias, o processo de aconselhamento segue funcionando. As experiências norte-americanas e brasileiras são uma clara demonstração daquilo que acontece quando esse processo de aconselhamento científico se torna profundamente disfuncional..E em Portugal? O Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP) foi estabelecido em 2009, expressamente para esta função consultiva em situações de crises ou emergências de saúde pública, contando para o efeito com duas comissões técnicas de coordenação (uma de vigilância epidemiológica e outra de emergência). As últimas notícias do CNSP são de inícios de março, quando se reuniu ainda sem o apoio das duas comissões especializadas, acima referidas. Não há notícias sobre o que terá acontecido desde essa altura..Mais tarde tornaram-se conhecidas as reuniões quinzenais do Infarmed onde, supostamente, os políticos eram sujeitos a um briefing dos peritos do qual resultaria a decisão política. A referida reunião evoluiu de um apoio unânime inicial, para um momento presente em que o apoio se desvaneceu acabando por ser suspensa. O que terá mudado? O conteúdo da reunião ou as características do processo? Aparentemente, o modelo funcionou durante esse período porque as mesmas tinham essencialmente um caráter informativo, uma vez que a decisão já estava tomada: era manter o confinamento..Porém, durante o desconfinamento as decisões são muito mais complexas, exigem outro tipo de informação, mas também um processo de planeamento estratégico que parece não existir. Neste contexto a reunião "modelo Infarmed" parece não funcionar..Consideremos então um formato de relação que enquadre a natural tensão entre conhecimento e decisão política, dividindo-o em três partes:.- Dispor de um organismo multidisciplinar que sintetize as várias contribuições de diferentes áreas que forneçam evidência científica acerca das múltiplas dimensões do processo de doença. Este grupo tem de responder a múltiplas questões acerca da doença, do impacto desta nas pessoas e comunidades, das perceções e comportamento associados e das respostas dos serviços de saúde..- Dispor de um organismo com capacidade de planeamento estratégico. Ou seja, a partir da síntese atrás referida há que exercer um juízo experimentado nesta arte e responder, entre outras, às seguintes questões: o que é que isto tudo quer dizer em temos da proteção de saúde pública? Que estratégia de ação isto sugere?.- Da resposta a estas questões nascerá um planeamento estratégico discriminado que prevê e orienta respostas de acordo com as características evolutivas da situação e com os contextos. As duas anteriores constituem-se como base da decisão política.