Aumento do número de inspetoras causa inquietação na Judiciária
O burburinho fez-se sentir no auditório da sede da Polícia Judiciária (PJ) quando começaram a ser chamados os nomes dos novos inspetores e inspetoras que iniciavam nesse dia, em outubro passado, o seu estágio: 28 (72%) eram mulheres e apenas 11 (28%) homens. A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, fez questão em salientar o momento em que as Sofias, Teresas, Marias, Cátias, se perfilaram no palco orgulhosas da conquista. Na verdade, tratava-se de uma cena inédita em que uma maioria esmagadora de mulheres tomava posse na carreira de investigação criminal numa polícia tradicional e historicamente masculina - porque tinha o combate ao crime violento no seu core business.
Presentemente, já são quase 30% entre dirigentes e inspetoras, com o maior número de sempre de mulheres a ocupar cargos de topo e sensíveis - entre elas a diretora nacional adjunta, Luísa Proença, a diretora da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, Saudade Nunes, a diretora da Unidade Nacional de Contraterrorismo e a diretora do Laboratório de Polícia Científica, Alexandra André.
"De acordo com estudos de sociologia das organizações, uma instituição começa a mudar quando a minoria tem mais de 15%", sublinha Helena Ferro de Gouveia, que estudou a liderança feminina no Exército para uma tese de mestrado na Academia Militar. "Nesta fase, a direção da PJ tem de pensar estrategicamente na forma de se adaptar à nova realidade", sublinha.
Apagadas as luzes da cerimónia da posse das novas inspetoras, o momento transformou-se em fator de desassossego para muitos quadros daquela polícia que têm observado esse crescendo de mulheres nas brigadas de investigação. Não por qualquer tipo de misoginia, garantem, mas simplesmente "por razões operacionais", como nos sublinha uma mulher - a inspetora chefe Carla Pinto, vice-presidente da Associação Sindical dos Funcionários da Carreira de Investigação Criminal (ASFIC).
De acordo com os dados oficiais facultados pela Direção Nacional desta polícia, se em outubro entraram 72% de mulheres, em abril dos 120 novos inspetores que iniciaram os seus estágios, mais de metade (51, 6%) eram do sexo feminino. No curso anterior, em 2014, as mulheres foram 49,3% e antes desse, em 2009, foram 55,2%.
A continuar a este ritmo e com uma PJ envelhecida (50 anos de média de idades), em 10/15 anos, as mulheres poderão mesmo dominar a Judiciária. Carla Pinto não aceita e receia pelas consequências: "Não queremos uma maioria de mulheres na PJ", deixa claro, quando olha para estes valores e se lembra que "cada vez mais se vão vendo brigadas onde as mulheres já estão em maioria". Insiste e torna a insistir que "não está em causa a sua competência, nem capacidade" e que mesmo no que diz respeito ao uso da força ou das armas "muitas mulheres superam os homens".
A questão de fundo, explica, "prende-se mesmo com os constrangimentos operacionais: por exemplo a questão da disponibilidade que se complica quando as mulheres são mães, o que acontece com a maior parte das novas inspetoras - logo que engravidam pedem para ir para unidades onde os horários são mais previsíveis, como o crime económico, e as outras brigadas, que lidam mais com o crime violento e são mais imprevisíveis, começam a ficar desfalcadas e acabam por sobrecarregar os inspetores mais velhos, que são levados ao limite e adoecem".
O balanço social da PJ de 2018 regista que neste ano as mulheres estavam em maioria no grupo dos inspetores mais novos (cinco a nove anos de serviço). Nesse ano, as inspetoras faltaram, em média cada uma, 13 dias para assistência a familiares e proteção da parentalidade. Os homens faltaram, em média, dia e meio cada um. Por doença, as inspetoras faltaram cerca de 10 dias e os homens nove. A conta foi dividindo o número de inspetores e inspetoras pelo total de dias de ausência.
A inspetora chefe, com 30 anos de carreira, assinala ainda que "há muitas situações operacionais em que não podem mesmo ir mulheres, ou pelo menos não em maior número, como em certos bairros sensíveis, ou quando tem de haver confronto físico, porque no fim da linha acaba por ser mesmo a força o que vale mais". Carla Pinto pensa que a Direção Nacional da PJ "tem de fazer alguma coisa para travar" esta tendência.
Mas o quê, que não seja discriminatório? A inspetora chefe acha que os testes físicos "são demasiado fáceis para as mulheres" e que um aumento do grau de dificuldade "equiparando-os mais aos dos homens, não havendo assim discriminação, poderia equilibrar mais as coisas", mas um "equilíbrio" que, para Carla Pinto, "não deveria ultrapassar os 70% de homens e os 30% de mulheres admitidas".
O presidente da ASFIC, Carlos Garcia, partilha a inquietação da sua vice e sabe que é geral na PJ: "Ainda na última reunião de sócios, em Coimbra, houve uma inspetora que levantou esta questão e contou um caso em que era preciso ir fazer umas buscas a um sítio de risco e que só havia uma brigada com quatro mulheres e um homem. Tiveram de ir buscar homens a outras brigadas. As pessoas estão preocupadas". Este dirigente sabe que as soluções "não são fáceis" porque, "apesar de podermos apresentar motivos objetivos para esta necessidade, podem ser sempre levantadas questões das igualdades e da discriminação".
Garcia lembra que "polícias de outros países, como Espanha, também enfrentaram este problema e, se numa primeira fase, tentaram igualar os testes físicos e isso foi impedido pelos tribunais, depois conseguiram através de algumas medidas cirúrgicas, reequilibrar as admissões. No entanto, numa polícia como a PJ, com pouco mais de mil inspetores esta questão tem um impacto muito maior. A PJ tem de encontrar forma de manter o equilíbrio".
Helena Ferro de Gouveia considera "preconceito que se diga que as mulheres não estão preparadas fisicamente" e compara com as Forças Armadas em que "este ângulo físico é usado para não colocar as mulheres na frente de combate". Esta investigadora vê uma "grande apetência das mulheres pela PJ: pela exigência intelectual, pela minúcia, pela resiliência - em geral características atribuídas às mulheres". Helena Ferro de Gouveia compreende "a apreensão dos inspetores mais velhos", mas lembra que "cada vez há mais trabalho de investigação sem necessidade de força física, como o cibercrime e o crime económico".
No seu entender, tentar travar as entradas de mulheres com a alteração dos testes físicos, "além de juridicamente difícil, não resolve o fundo da questão, que é a necessidade das instituições, neste caso a PJ, se adaptarem a esta nova realidade". E isto quer dizer "começar a pensar em estratégias que ajudem a conciliar a vida pessoal com a vida profissional, com estruturas de apoio internas, licenças parentais, horários flexíveis e trabalho adaptado".
O DN colocou várias perguntas à Direção da PJ sobre este tema e sobre a estratégia que vai seguir, mas não obteve resposta.
A investigadora Helena Ferro de Gouveia diz que o Exército em particular ocupa "um lugar privilegiado" para o combate à discriminação de género. Se na PJ o aumento do número de mulheres está a levantar questões de adaptação operacional, nas Forças Armadas, onde ainda são uma minoria, vêm sinais de abertura à entrada de militares do sexo feminino.
"O universo da Defesa Nacional foi, durante séculos, um exclusivo masculino, associando a guerra à masculinidade. Desconstruir esta ligação deve fazer parte da nossa missão. A nossa ambição é termos Forças Armadas cada vez mais preparadas para cumprirem o alargado leque de missões que lhes atribuímos, e não tenho dúvidas de que a maior participação de mulheres, em todos os níveis e em todas as funções militares, é um dos elementos necessários para atingirmos esse desiderato", afirmou o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, na cerimónia do Dia da Mulher do ano passado.
Mas apesar da boa vontade política e das iniciativas legislativas, "o aumento de mulheres em profissões tradicionalmente masculinas como a vida militar não se tem traduzido numa mudança estrutural", como constata Helena Ferro Gouveia, que investigou este tema para uma tese de mestrado sobre "Liderança Feminina: estereótipos de género no Exército" que está a concluir. Ao DN, esta especialista em comunicação, sublinha que " no entanto, inegável uma abertura diferente à presença de mulheres".
Nesta sua investigação académica, em que avaliou em oficiais do Exército diversos parâmetros considerados características de líderes, concluiu que as mulheres "apresentam assertividade e independência próxima dos oficiais de sucesso" e têm uma maior "preocupação com os outros".
Helena Ferro Gouveia lembra que "hoje em dia já não se enfatiza o autoritarismo e o individualismo numa liderança. Antes se enfatiza a mutualidade que existe entre líderes e seguidores e os comportamentos relacionais necessários numa tal realidade". Esta "visão moderna da liderança deixa espaço para comportamentos e atributos tradicionalmente femininos, o que alimenta algum otimismo sobre mais mulheres líderes".