Todos os anos morrem em Portugal uma média de 30 mulheres às mãos dos companheiros e ex-companheiros. Há leis para as proteger, mas nem sempre tudo é feito nesse sentido. A falta de comunicação das entidades públicas envolvidas nestes casos - desde as polícias, procuradores, profissionais de saúde e segurança social - é uma falha que pode levar a que nem todos os mecanismos sejam acionados..Quem o diz é Rui do Carmo, procurador jubilado e coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica, e identifica também a falta de formação para lidar com casos de violência doméstica por parte de todos os envolvidos. Apela ainda aos cidadãos para que se indignem com a violência doméstica, que a denunciem... mas que também tenham coragem de ir a tribunal contar o que sabem. Porque só assim se pode fazer prova dos crimes..A Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica é um organismo criado pelo Ministério da Administração Interna em 2017 para avaliar casos de homicídio que já tenham transitado em julgado ou sido objeto de decisão de arquivamento ou não pronúncia - os tribunais e o Ministério Público (MP) estão obrigados a fornecer-lhe essa informação. O objetivo é identificar falhas, retirar conclusões de forma a que a equipa faça recomendações às entidades envolvidas. Para que adotem novas metodologias preventivas..Até agora, a equipa elaborou cinco relatórios. O último foi conhecido em dezembro e é demolidor para todas as entidades envolvidas - procuradores, polícias, setor da saúde - que falharam na proteção de Angelina, que viria a morrer queimada pelo ex-companheiro..O último relatório da equipa aponta falhas aos polícias, aos magistrados, ao setor da saúde. É um caso paradigmático de que tudo falhou. Isto significa que esta vida podia ter sido salva?.Nunca podemos dizer que esta vida podia ter sido salva. Podemos dizer é que não se fez tudo o que está previsto que se faça e se podia fazer para evitar este desfecho. Isso é verdade. Houve oportunidades perdidas de intervenção..E porque é que falham? A falta de comunicação entre as entidades é a principal falha?.Também. Há três grandes questões que os nossos relatórios indiciam que têm de se trabalhar para melhorar. A primeira é a capacidade de aplicar a intervenção de avaliação das denúncias que está prevista desde 2015 no artigo 29 a) da lei da violência doméstica, que prevê que se consiga obter o diagnóstico em 72 horas sobre o grau de gravidade da situação e sobre as medidas que têm de ser tomadas para evitar a escalada da violência. Esse procedimento, nos processos que avaliámos, nunca o vimos aplicar e, portanto, isso é uma falha importante. Porque permite uma avaliação do risco imediata, recolher informação sobre a situação, definir medidas de prevenção e poderem tomar-se medidas de coação relativamente ao agressor. E ainda distinguir as situações de terrorismo íntimo das questões de violência situacional, que é fundamental para se poder tratar de forma diferente aquilo que é qualitativamente diferente..Porque é que o procedimento não é aplicado? Por falta de conhecimento, mesmo dos magistrados?.Isso radica em mais dois problemas sobre os quais é necessário refletir: um é o problema da compreensão do fenómeno da violência doméstica. Nos casos que analisámos, detetámos que ainda há pouca compreensão sobre o que é a violência nas relações de intimidade, do que é a violência contra as mulheres, do que é a violência doméstica. E isto obriga a pensar como é que a formação nesta matéria se deve fazer e obriga necessariamente a pensar a formação associada aos modelos de intervenção. A formação dissociada e desgarrada dos modelos de intervenção tem menos capacidade de influenciar a prática das pessoas..Mas fala da formação de todos os intervenientes - magistrados, polícias....Falo dos magistrados, falo dos polícias, falo da saúde, falo da segurança social, falo de todos os intervenientes nestes processos que até agora encontrámos e que foram estes..Quer dizer que a formação é muito teórica?.Quero dizer que a formação tem de transmitir às pessoas uma perspetiva de elucidação da sua prática. Tem de melhorar a sua prática. Por outro lado, há uma grande desarticulação do sistema, há uma falta de transmissão de informação e diálogo entre várias entidades que têm contacto com situações de violência doméstica e é necessário aumentar estas ligações de troca de informações e de colaboração. Cooperação na ação, através de protocolos que responsabilizem todas as entidades. Uma entidade conhece uma parte do problema, outra conhece outros episódios, mas isolados não têm a relevância que têm se forem todos conhecidos por todos. Parecem coisas ocasionais, situacionais, que às vezes não são. Só com o juntar da informação é que se percebe. Há grandes deficiências e tem de se estabelecer protocolos para não deixar à espontaneidade de cada organização. Isso pode correr mal..O protocolo que foi nesta quarta-feira assinado entre o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) e a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) poderá ajudar?.Tudo o que seja formação é bom. E é bom que essa formação seja orientada para os procedimentos, para elucidar, para melhorar, para capacitar os profissionais nos procedimentos que têm de adotar quando se depararam com uma situação destas..Desculpabilização de agressores, penas pouco pesadas... A justiça tem mão leve para os crimes de violência doméstica?.Nessa matéria e nesta função não me pronuncio sobre isso porque não faz parte do nosso âmbito de atuação, não analisamos as decisões judiciais, as sentenças, ficamos sempre a montante dessa decisão final..Não temos problemas de leis, mas da sua aplicação?.Não temos problemas de leis, até porque aplicamos insuficientemente as leis que temos. Enquanto aplicarmos insuficientemente, o que deve preocupar-nos é aplicá-las em pleno. E depois logo se avaliará se é preciso ir mais longe ou não..A equipa recomendou à PGR a uniformização dos procedimentos. O que é que isto quer dizer? Que cada magistrado atua pela sua cabeça?.Propusemos que a PGR ponderasse a definição de boas práticas que os magistrados deviam seguir nesta matéria. A procuradora-geral anterior, Joana Marques Vidal, concordou com essa proposta e criou um grupo de trabalho para formular esse documento. Sei que está a ser desenvolvido. Neste último relatório chamámos a atenção para a necessidade de nesse documento serem contemplados dois aspetos que têm que ver com a direção da investigação criminal feita pelos órgãos de polícia criminal. Ou seja, este é o tipo de crime em que de uma forma notória o Ministério Público não pode delegar a investigação à polícia e não acompanhar de perto o desenrolar das coisas porque os factos evoluem por vezes de forma inesperada e rápida e é preciso estar sempre atento. Por outro lado, é necessário resolver uma questão com que já nos deparámos duas vezes, que é a menor incidência de capacidade de intervenção e direção da investigação em períodos de férias judiciais. Portanto, há a necessidade de resolver isso do ponto de vista das escalas de turno..O que propõem é um manual de boas práticas?.Achamos que é importante que haja um manual de boas práticas do MP por várias razões. Para já, porque há várias formas de atuar do MP sobre esta matéria e é importante que estas várias experiências sejam refletidas para delas se extrair uma maneira de atuar, uma linha de atuação. Por outro lado, porque o que existe em termos de documentos hierárquicos nesta matéria são dispersos e são de anos diferentes e esta dispersão gera sempre dificuldades na sua implementacão. E depois também porque achamos que é muito importante que haja uma linha uniforme de atuação do MP que seja capaz de ter em conta os diversos aspetos da violência doméstica, que tem também ela uma legislação muito dispersa..Já falou com a nova procuradora?.Não falámos ainda, mas sabemos que o grupo de trabalho continua e, portanto, não há nenhuma alteração de estratégia do MP nesta matéria..Podemos dizer que temos todos os meios para proteger as mulheres?.Temos instrumentos legais que nos permitem que essa proteção seja feita. Se me pergunta se está instalada no terreno a capacidade necessária para que essas leis sejam plenamente implementadas, penso que há ainda lacunas e deficiências nessa matéria, que nós temos encontrado nos nossos relatórios..Quais são essas lacunas?.Têm que ver com a existência nas forças policiais de militares da GNR e agentes da PSP que estejam especialmente formados para tratar destes casos. Há uma clara insuficiência..Sobretudo nos meios rurais?.Os casos que temos tido são sobretudo nos meios rurais..As entidades judiciárias continuam a não dar prioridade ao afastamento do agressor?.Fizemos uma recomendação nesse sentido num caso que detetámos, em que a primeira preocupação não foi afastar o agressor mas encaminhar as vítimas para uma casa de abrigo. Manifestámo-nos no sentido de que não devem ser essas as prioridades que devem ser tomadas. Os tribunais têm feito um caminho nesse sentido, mas ainda há um caminho grande a fazer. É importante marcar essa tónica, que as casas de abrigo não são de todo uma solução, apenas quando não é possível proteger a vítima no seu meio natural..É uma dupla penalização da mulher..Estou perfeitamente de acordo..Ainda há muitas situações em que a vítima é inquirida na mesma altura do agressor?.Nós encontrámos situações dessas, em que a vítima é convocada para uma hora muito próxima da hora em que o agressor é convocado e já recomendámos que isso não seja feito. Há dois aspetos a considerar: intimida a vítima e pode acontecer nesse momento um conflito com consequências imprevisíveis. Estão a criar-se as condições para que o conflito possa reacender-se fazendo que essas pessoas se encontrem, às vezes até no percurso para o inquérito. Por outro lado, quando se faz uma diligência destas é necessário previamente definir um plano de segurança, porque a vítima pode correr riscos - porque pode ser necessário fazer uma diligência com os dois -, mas tem de haver um plano de segurança, tem de se conhecer os riscos que existe naquele caso, que não permita que nessa altura possa acontecer uma nova agressão..Mas convocá-los para a mesma hora já mostra que o risco não foi avaliado....Não é sensato sequer. E, quando se convoca, há situações em que é necessário garantir logo o plano de segurança da vítima. Porque já tivemos casos nos nossos relatórios em que o homicídio acontece logo após a inquirição do arguido. Esse é um período em que dispara o risco de novas agressões. Tem de se acautelar..Aqui entra a formação e a capacidade de avaliação....No nosso último relatório há um conjunto de mensagens que propositadamente transcrevemos. Verificará que nenhuma das entidades intervenientes compreendeu que aquilo era o anúncio do que ia acontecer..As mensagens passam do "amo-te", "és a mulher da minha vida", para um nível de ameaça....Ninguém percebeu. A polícia não percebeu e nem sequer preservou as mensagens, o Ministério Público (MP) não percebeu porque pediu a transcrição e não pediu nenhuma medida depois disso... Portanto, ainda estamos um bocado pouco atentos..Nesse relatório fala de que a criança, filha da vítima, foi ignorada. As entidades envolvidas têm em conta o risco que as crianças que vivem nestes ambientes correm?.Às vezes diz-se que as crianças são vítimas secundárias, mas elas são vítimas primárias mesmo quando não são agredidas fisicamente. Este foi o primeiro caso em que havia uma criança envolvida e desde o princípio que a mãe pediu proteção para a criança e a criança foi absolutamente ignorada durante todo o processo. Isto mostrou falta de compreensão de que aquela criança era vítima destes comportamentos e a importância que havia em protegê-la..Como é que o sistema garante a proteção da criança?.Não há falta de instrumentos legais para que esta criança desde a primeira hora tivesse sido protegida. Não foi desencadeado nenhum mecanismo para a sua proteção. Era importante que as entidades tivessem percebido o perigo daqueles comportamentos para a criança, coisa que não foi percebida....A equipa já recomendou à Comissão para a Cidadania e a Igualdade que promova ao combate à violência doméstica em áreas geográficas sem resposta..São áreas onde há menos capacidade instalada, quer do Estado quer das ONG. Zonas que não estão nos grandes centros populacionais e onde há muitos casos de violência doméstica, alguns que atingem grande gravidade..Houve resposta a essa recomendação?.Quer a CID quer a secretária de Estado manifestaram a intenção de reforçar os meios de atuação nesses territórios mais abandonados..A equipa fala da necessidade de "desconstrução de mitos e estereótipos" sobre a violência contra as mulheres..Há pessoas que têm conhecimento de situações de violência que acontecem com alguma regularidade, não lhe dão a importância devida, desculpabilizam-nas. E esse é um apelo para a mobilização dos cidadãos no combate a este fenómeno. E à necessidade que há de fazer campanhas adequadas - uma das nossas preocupações é que as campanhas tenham em conta a quem se destinam, não sejam estereotipadas, não sejam apenas destinadas à população culta urbana..Acha que têm tido essas características?.É importante que haja uma sensibilização dos cidadãos para se indignarem com estes fenómenos e poderem ter um papel ativo no sentido de desencadear o apoio às vítimas e a intervenção de forma precoce. E isto foi a propósito dos dossiês em que muita gente próxima da vítima e do agressor tinha conhecimento da sucessão de episódios de violência, associado àquela ideia de que "ele até é bom rapaz, não faz mal a ninguém, é trabalhador"..Mas não é só em gente menos informada. Há o célebre acórdão do Tribunal da Relação do Porto que desculpabiliza a violência doméstica justificando com o adultério e a Bíblia....Não é só nas pessoas menos informadas, nem só nas zonas rurais, é nas zonas urbanas e nas pessoas pretensamente mais informadas... Sobre esse acórdão já tudo foi dito. Discordo de toda a fundamentação que consta e é uma jurisprudência que não se deve repetir..Em relação à saúde, a equipa aponta a falta de documentação das situações....As vítimas recorrem aos serviços de saúde de proximidade para manifestar, às vezes de forma não direta, o mal-estar da situação em que se encontram....Não está a falar dos casos em que são espancadas....Nem estou a falar disso, estou a falar dos efeitos psicossomáticos da situação em que vivem. É importante a Direção-Geral da Saúde ter um referencial técnico que permita despistar as situações de violência na intimidade. É importante que esse despiste seja feito o mais cedo possível porque se consegue intervir de forma preventiva, evitando que se agudize o conflito e as suas consequências. É muito importante que esse referencial técnico, que existe há uns anos, seja implementado e que quando há elementos consistentes sobre a possível existência de violência doméstica se criem mecanismos que permitam que os serviços de saúde sinalizem esses casos à justiça. Isto tem de ser feito através da definição de regras de colaboração entra a saúde e a justiça..Exige uma grande perspicácia e formação por parte dos médicos de família....Exige que os profissionais dos serviços de saúde tenham formação nesta área. Às vezes pensamos que são só os polícias ou os magistrados que não percebem os sinais. Os médicos e os enfermeiros, os assistentes sociais, podem não perceber os sinais. É necessário que toda a gente tenha formação para isso. Nos serviços de saúde é necessário que a denúncia destes casos seja bem articulada com as forças de segurança e com a justiça. E este é um trabalho que se está a começar a fazer..Que recomendação faz aos portugueses, a quem é vítima e a quem sabe que há vítimas?.Quem é vítima não deve ter receio de se dirigir a um órgão de polícia criminal ou ao Ministério Público e apresentar a sua situação. E deve transmitir toda a informação que tem, por forma a que se conheça bem a situação e se possa garantir a sua proteção..O problema é que muitas mulheres dependem financeiramente dos agressores....Mas para isso o Estado deve assegurar a proteção necessária às pessoas, e há mecanismos do ponto de vista da sua subsistência, e para o apoio psicológico. Estão previstos mecanismos que garantam que as pessoas possam ter esses suportes. A efetividade destes suportes também passa muito pela atividade das pessoas, se as pessoas não recorrem a eles, a tendência é que adormeçam. Se recorrem a eles, rapidamente se reativam e há a obrigação de se reorganizarem..E aos cidadãos, o que recomenda?.Os cidadãos devem exercer o seu dever de se indignar face a este fenómeno e transmitir às autoridades as situações que conhecem. Que se esqueçam dos ditados, que isto é um crime público que é uma questão de direitos humanos e que portanto devem dar o seu contributo dando a conhecer as situações que são manifestamente de violência doméstica que conheçam, como estarem dispostos a dar os seus testemunhos quando for necessário fazer prova de que os factos aconteceram. Porque se houver início do procedimento mas não houver depois a possibilidade de obter prova do que aconteceu, a vítima acaba por ficar desprotegida e a efetividade desta proteção ganha uma grande erosão da própria lei penal. Se por falta de produção de prova houver uma percentagem mais significativa de não procedência, há incapacidade de inibir comportamentos..Como homem, o que mais o choca neste fenómeno da violência doméstica?.A violação dos direitos pessoais. Ou seja, a manutenção por parte de muitas pessoas de uma ideia de desigualdade entre homem e mulher que não tem nenhum fundamento, e um comportamento de violação dos direitos humanos.