A data de aniversário do guitarrista Joel Pina foi ontem, mas, desde que a mulher morreu nesse mesmo dia, passou a celebrar no dia de amanhã. E pode fazer este malabarismo de datas porque, se na verdade nasceu a 17 de fevereiro de 1920, só foi registado dois dias depois, a 19. Não são uns anos quaisquer, afinal amanhã é o dia em que comemora o seu centenário..Acompanha todos os grandes nomes do fado desde há décadas e, atualmente, continua a subir ao palco para tocar com o fadista João Braga. Por essa razão é-lhe difícil escolher o momento mais significativo da carreira e mesmo o fado que mais gosta. Em entrevista ao DN, que lhe interrompeu a sesta retemperadora, Joel Pina só é capaz de afirmar quando se lhe pergunta qual a melhor memória da vida musical que não sabe escolher..Não sabe porque ao longo de quase um século que o fado lhe preenche os dias. Nascido no Rosmaninhal (concelho de Idanha-a-Nova) veio aos 18 anos para Lisboa, onde como grande apreciador do fado logo começa a frequentar o Café Luso, local em que veio a conhecer Martinho de Assunção que onze anos depois de chegar à capital, em 1949, lhe faz o convite para fazer parte do Quarteto Típico de Guitarras de Martinho de Assunção. A partir desse momento, Joel Pina - que se chama João Manuel Pina - nunca mais deixa de subir aos palcos e inicia a sua grande alteração no fado, introduzindo a viola baixo. Segundo a biografia que o Museu do Fado lhe fez, Joel Pina "é indissociável da história do fado, seja pela contribuição fundamental que deu na integração da viola baixo no conjunto de instrumentos de acompanhamento do fado, seja pela qualidade interpretativa que o destaca no universo musical, desde que se profissionalizou em 1949 até hoje"..Com uma tão longa história no fado, quando se insiste em perguntar qual a melhor memória que tem da vida profissional, Joel Pina não precisa de pensar muito: "Não sei." Acrescenta: "Foi uma vida tão cheia daquilo que é bom que toda a gente a gostaria de viver." Justifica que, sendo "uma vida muito prolongada", não é capaz de escolher: "Não pergunte qual é a melhor. Não sei mesmo, foram tantas.".Faz questão de avisar: "Eu ainda estou no ativo e toco para o João Braga de 15 em 15 dias.".Se é difícil escolher essa memória no dia do seu centenário porque, apesar de serem tantas e tão boas, há um momento a destacar: "Trabalhei 29 anos sempre com a Amália." Está percebido!.E como foi? "Dei a volta ao mundo, percorrendo os países mais importantes e tocando nas melhores salas", explica..De que países se recorda melhor? "É difícil dizer que era este ou aquele o melhor. No Japão passei momentos muito bonitos. Eles não compreendiam o que dizia o fado, mas viviam de uma forma boa o que ouviam. A Amália cantava umas coisas lentas e punha-os a acompanhar e eles iam atrás dela. E, mesmo sem perceberem, lá iam. Ela cantava La ra lá, La ra lá, e eles repetiam. Cantavam bem e por isso ela punha os japoneses todos a cantar.".Mais países? "Em Itália foi uma coisa impressionante, em França, no Olympia, o mesmo, com a sala cheia de portugueses. Paris é um ambiente musical diferente e a sala tem o melhor som e luz. E também estivemos na Rússia quando ainda era proibido.".Um dos maiores sucessos de Amália e dos seus acompanhantes foi no Brasil: "No Rio de Janeiro, estivemos dois meses de seguida em 1972 no Canecão. Todos os dias da semana, à exceção de uma folga por semana para descansar. Em 1973 regressámos, bem como muitas outras vezes. Ir ao Brasil era como se fosse aqui ao lado!".Pode-se dizer que a parte da vida em que acompanhou a Amália é das mais importantes da sua vida, mas Joel Pina não ficou preso ao passado. "Eu gostei de tocar com quem cantava bem e houve muita gente que cantou bem, como o Tony de Matos e a Teresa Tarouca", refere, para logo acrescentar que "já toquei com todas as de hoje".."Todas" são as novas fadistas: "Com estas que estão aí e que cantam muito bem. Temos muita gente boa a cantar." Dá-se nomes: Ana Moura, Katia Guerreiro, Mariza... "Está a falar de pessoas que cantam bem, sim senhor", confirma..Estas novas fadistas não estragaram o fado com as novidades que introduzem? "Não e toquei para todas elas", assegura..Gosta mais de acompanhar homens fadistas ou mulheres? "Desde que cante bem, é indiferente", responde, mostrando que os anos Amália não o viciaram numa voz feminina..E fadistas homens quais prefere. Solta-se um primeiro nome: Camané... "Sim, já o acompanhei. Há muito boa gente, mas não vale a pena estar a invocar nomes porque é sempre um bocadinho ingrato porque não nos lembramos de todos." E Carlos do Carmo? "Toquei com ele sim senhor, também é uma grande voz", diz..Quanto à introdução da viola baixo no fado, Joel Pina recorda que foi na Adega Machado que começou a tocar viola baixo neste género musical. Porque não se usava? "Não sei. As coisas têm vindo a desenvolver-se no fado. Há cem anos, o fado era outro, completamente diferente", afirma..O fado de hoje desmerece o de antigamente? "Não, não, não. É certo que está a fugir um bocadinho das características; está bem cantado, mas o acompanhamento é cada vez mais diferente. Já mete contrabaixos, concertinas e bateria", enumera..Estranha essas novas sonoridades no fado? "Como música aceito, mas passa a ser quase uma canção. Quando é fado é fado, quando é um fado mais canção será de outra maneira. No entanto, não é nada que não se ouça, apesar de fugir das regras que estavam em prática noutros tempos", considera..Gosta mais da formação tradicional? "Eu gosto de ouvir fado característico, mas é a transformação que vai havendo. Começou-se na coisa simples que havia antes e foi-se desenvolvendo. Se foge às características, foge sim", garante..Compreende que o público também é diferente: "Até esse vai mudando, se calhar até gostam mais desta forma", remata..Joel Pina recorda que a seguir ao 25 de Abril de 1974 o "fado estava tremido". Razão? "Porque a esquerda considerava o fado como música dos fascistas. Nessa altura, o fado esteve em baixo. Na Emissora Nacional, dizem, até parece que partiram os discos todos que lá havia de fado", recorda..Nos últimos anos, Joel Pina já foi homenageado diversas vezes como enumera a biografia do Museu do Fado: condecorado com a Medalha de Mérito Cultural em 1992 pelo Estado português; em 2005, na Gala dos Prémios Amália Rodrigues, recebeu o Prémio para Melhor Viola Baixo no Fado e, em 2006, na Grande Noite do Fado, o Prémio Carreira para instrumentistas. Os elementos do Conjunto de Guitarras de Raul Nery, ao qual pertenceu, foram homenageados em 1999 no Museu do Fado e reconhecidos com a Medalha da Cidade de Lisboa, grau ouro, em 2010. Em 2012, foi a vez de ter direito ao documentário Fado..Por tudo isto e porque os espectadores "gostavam da forma como eu tocava", Joel Pina ri-se bastante de satisfação quando se o questiona sobre o apreço do público: "Penso que sim e eu fazia para que gostassem.".As pessoas não se esquecem de si? "Penso que não se esqueceram ainda de mim, apesar de fazer 100 anos agora. Não tenho queixas da vida, nenhumas. Sou um homem feliz, dos mais felizes. Hoje, digo-lhe, com a vida que vivi e como estou sinto-me felicíssimo. É claro que me vão faltando umas coisas na saúde, mas isso é lógico.".Antes de se terminar a conversa tenta-se saber qual o fado de que mais gosta Joel Pina. Não vale a pena insistir: "Essa é uma pergunta a que não sei responder. Não sou capaz, há tantos de que gosto que não consigo escolher.".Quanto à homenagem pelos 100 anos, Joel Pina só diz: "Agradeço muito. É uma homenagem fantástica e em março haverá um espectáculo de fado. Talvez toque."