"Ele e o seu trabalho estão quase esquecidos hoje, oprimidos por uma audiência desmamada na atenção fugaz à televisão", escrevia Dirk Bogarde, em janeiro de 1994, num artigo para o Daily Telegraph intitulado "A Genius in Love with Vulgarity - The secret Joseph Losey". Se as palavras do ator britânico sobre o realizador com quem fez uma mão-cheia de filmes já eram certeiras há mais de duas décadas e meia, nos dias que correm só precisam desta atualização: a audiência agora está voltada para o streaming, mas nem aí há rasto do cinema de Joseph Losey (1909-1984), figura confinada ao esquecimento. Daí que o ciclo Rever Joseph Losey, Cineasta Essencial, organizado pela Leopardo Filmes, assuma um duplo significado: não só recupera um nome fora do radar, como o faz num momento em que o ritual da sala escura deve ser restabelecido..Losey, nascido no Wisconsin, como Orson Welles, e, à semelhança deste, um cineasta "maldito" que lutou pela autonomia artística, não teve carreira longa em Hollywood. Começou no final dos anos 40, assinou em 1951 um brilhante remake da obra-prima Matou, de Fritz Lang, e ao fim de cinco longas-metragens passou a constar da lista negra do macarthismo. Era o tempo da caça às bruxas, da paranoia anticomunista, e o facto de Losey, um amante do teatro, ter colaborado com Bertolt Brecht foi mais do que suficiente para lhe caírem em cima. Banido da indústria americana, exilou-se no Reino Unido para trabalhar (no início, sob pseudónimos), passando depois por França e Itália..Os seis filmes do ciclo que arranca amanhã em Lisboa (Nimas) e no Porto (Teatro Campo Alegre) correspondem a essa fase europeia da sua obra, numa altura em que o free cinema inglês já marcava o panorama - a câmara instável de Losey não é, no entanto, uma característica exata para estabelecer relação estilística com esse movimento. A linguagem visual do realizador tem uma angústia muito própria. Prisão Maior (1960), Eva (1962), O Criado (1963) e Acidente (1967), por exemplo, são filmes com sinais de asfixia, impregnados de uma ideia de masculinidade disfuncional, cujas emoções violentas sobressaem no nervosismo de vários elementos visuais e sonoros (muitos espelhos, portas, escadas, os sons do telefone a tocar, do pêndulo do relógio, de um carro prestes a capotar...) e retratam a vida "vulgar" dos ricos, entre festas, copos e banhos de imersão..No referido texto de Dirk Bogarde, integrado no livro For The Time Being, o ator sublinha essa forma de estar do próprio Losey, refletida nos filmes que poderão ser agora (re)descobertos. Bogarde nunca levou a sério a afirmação dele, em entrevistas, de que era um marxista: "Acho muito difícil de aceitar, dado o seu amor pela vida rica e o luxo em que insistia sempre que podia. Hotéis faustosos, comida e vinhos dos mais caros, elegância, os melhores costureiros, médicos de primeira, móveis lindos." Porém, estamos a falar do homem que se bateu pela liberdade de criar, com dificuldades em arranjar financiamento, e que seria aclamado pela crítica, desde logo, com O Criado, que marca a sua primeira colaboração com Harold Pinter no argumento. Neste filme, que põe a lente sobre o sistema de classes britânico, Bogarde interpreta o "criado" que domina um jovem aristocrata no espaço de uma casa que se vai tornando cada vez mais claustrofóbica. É um dos grandes papéis deste ator, capaz de ostentar como poucos uma expressão de sexualidade ambígua (embora nunca tenha assumido a sua própria homossexualidade)..Vemo-lo também em Acidente (outro filme com argumento adaptado pelo Nobel), como professor de Filosofia que, num longo flashback após um sinistro noturno, revisita os eventos anteriores àquela noite, espécie de sonho de verão em Oxford. Isto já depois de Joseph Losey ter ensaiado o jogo da decadência masculina na personagem do recluso de Stanley Baker em Prisão Maior, ator que regressa em Eva, como escritor de sucesso que, sendo uma fraude, acaba caído em desgraça no inverno de Veneza, humilhado por uma mulher-leoa - Jeanne Moreau, fria como o seu gin tónico -, que se torna instintivamente o foco de deleite da câmara..Sobre estes filmes do ciclo paira a obra suprema Mr. Klein (1976), com Alain Delon. E no dia 13 de maio junta-se à mostra aquele que valeu a Losey a Palma de Ouro em Cannes: The Go-Between - O Mensageiro (1971), terceira colaboração com Harold Pinter, história de um amor proibido a que a banda sonora de Michel Legrand confere o remate de perfeição..Voltando a Bogarde, o homem que identificou a contradição de Losey não deixou de ver a grandeza do realizador "na coragem, na visão, em todo o seu intelecto cinematográfico". Mais precisamente, "na sensibilidade incrível que ele tinha para a textura, forma, luz e ritmo do filme, na consciência aguda de que a câmara captava o pensamento, assim como o objeto." Com efeito, qualquer um dos títulos aqui chamados de "essenciais" nos deixam com a sensação de que há uma alma jazzística na sua abordagem: não é apenas uma questão concreta de música - como aquela de Billie Holiday que fica a soar depois de se ver Eva -, mas uma pura inteligência formal e, já agora, um pessimismo muitíssimo bem-vestido..dnot@dn.pt