Miguel e Catarina entraram primeiro na igreja do Convento de Jesus e vão a caminho do museu. Não sem antes elogiarem a reabilitação do espaço exterior, até aqui uma espécie de "buraco" de betão, muito procurado por skaters, e agora substituído por um jardim onde o pelourinho parece ter ganho outra dimensão. O nivelamento, diz Miguel Cruz, "trouxe mais movimento à zona, parece que a baixa ganhou mais 500 metros". Mas não foram só os setubalenses que ganharam: "Os turistas vinham à praia, vinham comer choco frito, agora também têm este monumento para ver.".O que Miguel e Catarina Duarte, ambos de 27 anos, não sabem é que assim que transpuserem o acesso ao museu se vão deparar com uma das várias descobertas feitas durante as obras de reabilitação do Convento de Jesus, que abriu as portas ao público nesta semana, depois de uma inauguração com pompa e circunstância a 10 de outubro. Nem que em menos de uma semana - e com todas as restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus que impede, por exemplo, visitas de grupo - já ali se deslocaram mais de 500 visitantes..A primeira surpresa que o arquiteto Carrilho da Graça teve foram, pois, os achados arqueológicos de antigas estruturas do convento que estavam abaixo do solo: a casa da veleira (a freira que detinha a chave do convento), a casa do padre, a roda que permitia a entrada de produtos no convento - preciosidades que continuariam a ser ignoradas se não se baixasse a cota, explica José Luís Catalão, chefe de divisão de Bibliotecas e Museus da Câmara Municipal de Setúbal e responsável por este museu. Este achado obrigou a alterações ao projeto inicial e impediu, por exemplo, a colocação de um elevador exterior..O que talvez Catarina e Miguel também desconheçam é que este monumento de estilo manuelino começou a ser construído em 1490 por iniciativa de uma mulher, Justa Rodrigues Pereira. A fundadora do Convento de Jesus, uma mulher que já perceberemos que sabia mover as suas influências na corte, teve na sua juventude uma relação com D. João Manuel, bispo da Guarda e de Ceuta, de quem teve dois filhos. Mais tarde terá integrado a corte como ama-de-leite de D. Manuel, sucessor de D. João II e, já a viver em Setúbal com mais recato, depois de conseguir comprar os terrenos e de obter uma carta papal, mexeu-se para que o convento fosse construído..D João II financiou o projeto, mas quando veio à cidade lançar a primeira pedra terá achado a obra poucochinha e "andou a medir a passos" o tamanho que queria para o convento - conta José Luís Catalão, que nos guia nesta visita e dá a conhecer o que ainda está por vir na terceira fase da intervenção, como o regresso do retábulo, o Políptico Seiscentista do Convento de Jesus..D. João II - que encomendou a construção do convento ao arquiteto régio Diogo Boiteca - voltou para o lançamento da "pedra fundamental", que seria, afinal, já a segunda pedra, visto que não ficou satisfeito com as dimensões inicialmente previstas. Essa mesma pedra, com um Y inscrito, pode ser vista na visita ao museu. Tal como os dois sinos do convento que seriam oferecidos por D. Manuel, após a morte de seu antecessor, quando se viu moralmente obrigado a investir mais no monumento quando subiu ao trono, a pedido expresso de Justa Rodrigues Pereira - consta que ela terá usado os laços que os uniam, já que tinha sido sua ama-de-leite, e ele não soube dizer-lhe não. Além dos sinos, o novo rei ofereceu também os tetos da igreja de pedra, quando estava previsto serem de madeira..A data do início da construção do monumento leva o responsável do museu a afirmar que, ao contrário do que se instituiu, o Tratado de Tordesilhas não poderá ter sido assinado no Convento de Jesus. "As obras começaram em 1490, o tratado foi assinado em 1494. D. João II vinha para aqui assinar o tratado com isto em obras?".Seguimos a visita guiada, até àquela que é agora a joia da coroa do museu - o altar maior. Sentadas no cadeiral - 33 assentos de madeira unidos, tantos quantos a idade de Cristo quando foi pregado na Cruz -, era aqui que as freiras, da ordem franciscana de Santa Clara assistiam à missa, num plano superior ao da igreja. Mas sempre sem serem vistas, mesmo quando comungavam. A janela, com grades, de onde viam a nave da igreja está repleta de pinturas com rostos femininos, entre eles o de Justa e o da rainha Santa Isabel..E foi aqui que as obras de intervenção levaram a outra descoberta - a existência de um coro baixo, no plano da igreja. Pensa-se que terá sido soterrado por tremores de terra, anteriores ao de 1755. É também aqui que se encontra uma criança mumificada e que uma TAC revelou ser de uma menina que terá morrido por problemas renais - será filha de D. Jorge de Lancastre, filho bastardo de D. João II..O espaço museológico tem ainda uma sala de exposições onde é possível conhecer algum do acervo cultural do convento - vale a pena a demora com a obra Virgem de Leite, uma pintura do século XVI, da Escola Flamenga, e atentar nos olhos da criança. Para onde quer que o visitante se desloque, seja para a esquerda ou para a direita, para trás ou para a frente, uma coisa é certa: o olhar do menino irá persegui-lo, como se acompanhasse os movimentos..Há ainda a obra Bocage e as Musas, de Fernando Santos, que encerra uma particularidade, conta José Luís Catalão. O quadro que retrata o poeta sadino com as suas musas inspiradoras foi censurado pelo próprio autor aquando de uma visita do cardeal Cerejeira a Setúbal. O pintor decidiu torná-lo menos explícito e menos lascivo, tendo até colocado o véu que passava por detrás das musas para a frente, escondendo assim um pouco da nudez..Nesse espaço é ainda possível apreciar uma peça que terá pertencido a Luísa Todi e que acompanharia a cantora lírica setubalense nas suas viagens - trata-se de um móvel escrivaninha, toucador e oratório..Coma extinção das ordens, o convento deixa de ter função religiosa em 1888, quando morre a última freira que o habitava. Passa então para as mãos da Santa Casa da Misericórdia que ali instala o Hospital do Espírito Santo até 1959, quando é construído o atual Hospital de São Bernardo. Adaptar um convento a hospital obrigou a muitas transformações e à destruição de alguns elementos, como as pequenas capelas das alas do claustro, a passagem dos dormitórios das freiras a enfermarias, o alargamento de portas e janelas - escaparam a esta descaracterização o claustro, a sala do coro alto e a sala do capítulo..Tudo isto pôde ser visto por Miguel e Catarina que conhecemos no início. Mas há outra joia do convento de Setúbal que ainda não pode ser apreciada pelos visitantes e que só regressará a casa com a terceira fase de recuperação que começa até ao início de 2021. A obra não está exposta como retábulo desde o século XVIII - o conjunto de 14 pinturas (1517-1530), atribuído à oficina de Jorge Afonso e que se destinou à capela-mor da igreja do convento, saiu de Setúbal para integrar a Exposição do Mundo Português em 1940 e, em 1992, para a Exposição Universal de Sevilha. Os quadros encontram-se agora expostos na Galeria Municipal do Banco de Portugal..As obras na ala norte e nascente preveem assim que o retábulo, quando exposto, seja apreciado em dois níveis de visão, a partir de uma sala térrea e outra superior, que dá a ideia de estar suspensa..As obras de recuperação do Convento de Jesus que a Câmara de Setúbal tomou em mãos, apesar de ser monumento nacional desde 1910, ascendem a 8,7 milhões de euros, metade deles financiados pelo PORLisboa 2020..Miguel e Catarina não puderam estar presentes na inauguração, mas mal tiveram uma folga foram ver o monumento devolvido à cidade, depois de tantos anos fechado - até ao final do mês as visitas são gratuitas. Neste dia, Carla Rodrigues, 49 anos, não tem tempo para conhecer o convento. Limita-se a pegar no telemóvel e a registar a imagem. "Era lamentável o estado em que estava. Agora, pelo menos, temos verde, tanto que me apetece fotografar."