Na Alemanha parece que é domingo todos os dias. Mas sem vinho quente
Na semana passada, a chanceler Angela Merkel foi notícia porque fez um discurso emocionado no Bundestag, o parlamento alemão, no qual apelou a novas medidas de combate à pandemia. "Se tivermos demasiados contactos antes do Natal, e isso acabar por ser o último Natal com os avós, então teremos falhado", afirmou perante os deputados no dia em que a Alemanha tinha registado um número recorde de mortes relacionadas com a covid-19: 598.
Defendeu como "plenamente justificadas" as propostas de um grupo de peritos para encerrar todo o comércio não essencial e escolas em particular entre o Natal e meados de janeiro. "Devemos fazer tudo o que for possível para evitar um aumento exponencial" do número de casos, disse Merkel. No domingo, perante o agravamento dos números, e após uma reunião com os líderes regionais, a chefe do governo federal anunciou um endurecimento das regras, a entrar em vigor nesta quarta-feira. "Somos obrigados a agir, e agimos agora."
E ontem, no dia em que entrou em vigor o novo confinamento parcial, ou o princípio do "fiquem em casa", o número de mortes atingiu o recorde de 952 e as novas transmissões situaram-se acima de 27 mil - não longe do máximo registado pelo Instituto Robert Koch. Depois de na semana anterior terem sido notificadas 149 novas transmissões por cem mil pessoas, o país registou 179,8 infeções pelo vírus por cem mil residentes nos últimos sete dias, um novo máximo. A título comparativo, em Portugal há 249,3 novos casos por cem mil e nos Estados Unidos há 404,7.
Os alemães vão passar uma quadra natalícia com poucos festejos, impedidos de alimentar o espírito, sem poder cantar nas igrejas, vedados de aquecerem corpo e alma com vinho quente, Glühwein, a tradicional bebida da época e dos mercados de Natal. E também não vale alimentar o consumismo, pelo menos de forma presencial, uma vez que o comércio está encerrado. As exceções são as lojas que não fecharam no confinamento, ao que acrescem os serviços de restauração em modo de entrega para casa e a venda de pinheiros de Natal.
Os contactos sociais terão de permanecer limitados durante o período de Natal, quando só serão autorizadas reuniões entre familiares próximos. As festividades do Ano Novo também serão reduzidas ao mínimo denominador, com a proibição da venda de fogo-de-artifício e de reuniões.
A Alemanha, um caso exemplar na primeira vaga, optou inicialmente por uma resposta menos rígida à segunda vaga do vírus do que outros Estados europeus, por forma a recuperar a economia; no mês passado, encerrou teatros, museus e outros locais de lazer, e os restaurantes ficaram a funcionar só com comida para fora, mas quase tudo o resto se manteve inalterado e os casos de novas infeções continuaram a subir de forma exponencial.
Conta-se que quando Morrissey escreveu a letra de Everyday Is Like Sunday (traduzível como "Parece domingo todos os dias") se inspirou na novela On the Beach, de Nevil Shute: um grupo de pessoas aguarda numa praia de Melbourne pela radiação nuclear oriunda do hemisfério norte. O caso não é tão grave, mas há algo de desconcertante, com laivos pós-apocalípticos, e que se sente nas ruas de comércio alemãs. "Parece um domingo", disse Ines Kumpl, uma berlinense de 57 anos, em referência ao facto de as lojas estarem geralmente fechadas naquele dia na Alemanha. "Estas medidas são necessárias, mas é penoso", comentou à AFP.
Fecham-se as bancas e até as luzes se apagam. "Até ontem à noite, ainda estávamos a receber clientes, mas hoje [quarta-feira] acabou. Não vale a pena deixar as decorações", disse Tobias, de 30 anos, enquanto retirava as luzes que emolduraram a sua banca de vinho quente no centro de Berlim.
Também o reformado Hans-Joachim Pauer se mostrou resignado e de acordo com as medidas do governo. "Isto é sem dúvida prejudicial para a economia, mas que alternativa temos nós?", perguntou o homem de 71 anos, à Associated Press. A também pensionista Andrea, que acompanhava o pai idoso ao médico, olha mais para a frente e prepara-se para um inverno duro, enquanto crê que as medidas não vão ser levantadas tão cedo. "Vão durar mais do que meados de janeiro", disse. O executivo aplicou as restrições até dia 10 de janeiro.
Para já, dizem as sondagens, os alemães estão com o governo da grande coligação conservadora e social-democrata (CDU/CSU-SPD): 80% concordam com a gestão do executivo chefiado por Angela Merkel ou apoiariam medidas mais restritivas.
A dirigente de 66 anos, que há muito anunciou não voltar a concorrer a um novo mandato, em 2021, mostrou-se preocupada com a corrida às lojas dos alemães. "Espero que as compras de segunda e terça-feira não nos penalizem", disse numa reunião do seu grupo parlamentar conservador. "A curva [de infeções] é muito má", terá comentado, segundo um participante disse à AFP.
Já a Deutsche Welle informou que na reunião Merkel disse que o uso de máscaras se irá manter num futuro próximo até que a vacina comece a fazer efeito e atinja o patamar de entre 60% e 70% da população. Um cenário que demorará meses a ser alcançado, ainda que a vacina deva começar a ser distribuída dentro de dias.
Através do ministro da Saúde Jens Spahn, o seu governo pressionou a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) a aprovar a vacina Pfizer-BioNTech antes do Natal. Spahn disse esperar que as vacinas comecem a ser inoculadas antes do final do ano na Alemanha. Em consequência, a EMA antecipou a reunião que tinha previsto realizar no dia 29 para dia 21 e espera-se o início da campanha de vacinação nos dias seguintes para os alemães e restantes cidadãos da União Europeia.
"Poderemos voltar gradualmente ao normal a partir do verão", disse Spahn à RTL.