Quem passar pela zona velha de Quarteira vai reparar numas fotos em tamanho gigante, a preto e branco, com umas caras em grande plano. Trata-se da exposição Heróis de Quarteira, uma das iniciativas do movimento Sou Quarteira. As pessoas retratadas foram escolhidas mediante votação da geração que hoje andará entre os 30 e 40 anos, a mesma de Miguel Jacinto e Dino D'Santiago, os mentores do projeto, com quem nos encontramos no restaurante Cabana, do pai de Miguel, "na rua onde tudo começou". Foi ali, num primeiro andar ao virar da esquina, que Dino pela primeira vez cantou, desafiado por Miguel, um dos pioneiros do movimento hip-hop que animou a cidade algarvia nos anos 90. Até então, Dino apenas cantava no coro da igreja, onde os pais eram catequistas. Ou melhor, no coro "e nos bares de karaoke de Vilamoura", como desvenda Miguel, "onde ia impressionar as miúdas inglesas" com os dotes vocais..É verdade", confirma Dino, que brilhava especialmente quando cantava a versão de Killing Me Softly with His Song, dos americanos Fugees, coadjuvado, nas partes em rap, por Miguel, então conhecido por Don Mouska, e pelo amigo Emerson, cujo nome de guerra era A.S 2. Era ali, naquele primeiro andar hoje em obras, que ficava "a casa de poesia", como chamavam ao quarto de Miguel, "transformado em estúdio" pelo grupo de amigos. "Foi ali que gravei as minhas primeiras canções, produzidas pelo Miguel", revela Dino. Na parede em frente vê-se umas fotografias dos Heróis de Quarteira, a de António Menau, "um professor de judo que marcou gerações", também ele morador naquela rua. Tal como o foi o músico e fotógrafo Mike Ghost, o autor das imagens, entretanto também compiladas no livro Heróis, lançado durante o festival Sou Quarteira, que começou ontem e continua hoje, sábado, com as atuações de artistas como Allen Halloween, Branko, Eva Rap Diva, Jimmy P, Mayra Andrade, Mishlawi, Mundo Segundo & Sam The Kid ou Plutónio, entre outros..Dino e Miguel conheceram-se na escola, foram da mesma turma e, de certa forma, têm um trajeto de vida similar, pois ambos vivem hoje fora de Quarteira e são o que se pode chamar casos de sucesso. Miguel, 34 anos, é "consultor de inovação" em Londres, onde trabalha para marcas como a Coca-Cola, o Chelsea FC ou a própria Microsoft, enquanto Dino, 36 anos, é Dino D"Santiago, um dos maiores embaixadores da nova música portuguesa, mas também de um novo país, multicultural, que tem neste microcosmos quarteirense um dos seus melhores exemplos. Aqui, no entanto, Dino continua a ser apenas Dino, como se percebe pelos cumprimentos efusivos das velhas senhoras com quem se cruza nas ruas, que a todas trata pelo nome; ou nos animados diálogos, em português ou em crioulo, que mantém com amigos dos velhos tempos, de quem se despede sempre com um "tamos juntos"..O núcleo duro do Sou Quarteira fica completo com a designer Inês Oliveira, 35 anos, mulher de Miguel, "uma quarteirense de coração", apesar de natural do Porto, e por Naomi Guerreiro, 29, a responsável por toda a produção do projeto, que não se esgota com o festival de música. Conforme explica Miguel, na génese do Sou Quarteira existe "uma grande vontade de devolver algo à cidade que nos fez crescer". Os principais objetivos do projeto passam assim "pela transformação da imagem da cidade", por "diversificar a experiência" além do sol e da praia e também por "dinamizar a população local"..Tal como aconteceu recentemente, com a gravação de Dengue, o tema que serve de banda sonora ao festival, criado pelo músico Dino D"Santiago e pelo produtor Pedro, mas cantado pelos artistas locais Sacik Brow, Perigo Público, Fragas e Iniciado. "Não lhes pagámos nada pela participação, mas inscrevemo-los na SPA e agora recebem todos direitos de autor pela música, sendo assim compensados pelo trabalho, mas também com uma ferramenta para o seu futuro enquanto artistas", realça Miguel..O passeio continua agora em direção à Red Home, uma velha casa de dois andares, pintado de vermelho, onde nos anos 90 a geração de Dino se juntava para ver concertos de punk-rock. Ao contrário do que seria de esperar, a comunidade hip-hop e a comunidade punk não eram rivais, bem pelo contrário. "Nada disso, dávamo-nos todos muito bem e até costumávamos tocar juntos, embora nem sempre corresse bem, porque eles gostavam de espancar a bateria e nós queríamos a coisa mais suave", lembra Dino, entre risos. O edifício, que alberga atualmente a sede do PCP em Quarteira, será em breve transformado na Casa da Cultura da cidade e por estes dias serve também para expor mais dois retratos de heróis quarteirenses, ambos "pessoas muito especiais" para Dino, o treinador de futebol Amílcar Duarte e a professora Carla Candeias - "por causa dela até cheguei a querer ser professor", conta. Um pouco mais abaixo fica o bairro social da Asa Branca, em tempos um dos mais problemáticos da cidade, eufemisticamente falando. "Havia muitos problemas relacionados com droga e com a marginalidade e muita gente que ficou pelo caminho", desabafa Dino. Um deles foi Chico, encontrado certo dia com uma bala na cabeça, numa morte nunca explicada. Na companhia dele, "ali mesmo, naquela janela", Dino ouviu pela primeira vez hip-hop, "coisas como Tupac e NWA", que lhe abriram os horizontes - não só musicais..De um lado e de outro da pequena janela lá estão mais dois heróis. Um deles é Anselmo Pereira, antigo jogador de futebol, que em tempos trocou o Flamengo pelo Louletano e depois por ali ficou, como porteiro da escola secundária, onde era conhecido como "o brasileiro maluco lá da porta". "Não tinha medo de ninguém e fechava logo as portas quando via aproximar-se gente que não devia estar ali", recorda Dino. A seu lado, está Odília Sacramento, uma antiga professora (chegou a dar aulas na América do Sul, onde hoje o faz num ATL), que há mais de duas décadas é conhecida por todos como "a cota dos cachorros". Não há quarteirense que não os tenha provado e, garantem, "não há melhores no mundo". Até Dino, sempre que regressa à cidade natal, lá vai: "Ainda ontem lá fui.".Enquanto conta estas histórias, Dino é surpreendido com a presença de Bruno Silva, mais conhecido por Cambuta, acabado de chegar de Lisboa. O abraço é efusivo e a conversa resvala para os tempos em que Cambuta era o presidente da associação de estudantes e convidou Dino e Miguel para atuarem ao vivo pela primeira vez. "Era um grande dinamizador e, fosse na escola ou na comunidade africana, estava sempre a fazer acontecer", lembra Dino..Já se vê ao longe o recinto do festival, mesmo em frente ao mar, na zona hoje conhecida como Passeio das Dunas, onde em tempos ficava o mal-afamado bairro dos pescadores, que durante a infância e parte da adolescência foi o lar de Dino e de muitos dos seus amigos. "A nossa geração destruiu, mas também é a nossa geração que está a fazer renascer Quarteira", desabafa o músico..Lembra o bairro como "um ponto de encontro, mas também de choque", entre as várias comunidades que o habitavam: os pescadores, na primeira linha, mais próxima do mar, mas também os ciganos e os africanos, que chegaram mais tarde, nos anos a seguir ao 25 de Abril, para ajudarem a construir o Algarve de sonho, da praia do sol e do turismo, tal como hoje o conhecemos. Era o que hoje se chamaria um bairro degradado, na altura de lata, mesmo, apesar do tijolo e da telha, "tapados com pladur, para enganar a câmara, porque não se podia construir junto ao mar e as casas eram demolidas, enquanto se fossem de madeira não, eram provisórias"..Olhando para trás, não tem dúvidas: "Era um sítio fodido, mas fui feliz aqui." Saiu do bairro aos "14 ou 15 anos" e aos 21 deixou Quarteira para ir viver para o Porto, em busca do sonho da música. Foi Virgul, então membro dos Da Weasel, que conhecera num concerto em Loulé, no qual fez a primeira parte, quem veio a Quarteira falar com os pais de Dino, pedir-lhes para o deixar ir. À sua espera tinha já um lugar nos Expensive Soul, onde se manteve "até 2015". Depois, foi tempo de começar a voar sozinho, com o êxito que se conhece. Mas isso é outra história, agora, por estes dias, é tempo de voltar a casa. Afinal, como lhe disse aquele velho pescador, em jeito de cumprimento, quando regressava da faina, "melhor do que isto, só isto"...