Em agosto de 2008, o casal Erdogan foi receber o casal Assad à porta do avião no aeroporto de Bodrum. As notícias e as fotografias da época mostravam cumplicidade e proximidade, as quais seriam cimentadas nas férias que iriam passar juntos nessa estância balnear. Uma dúzia de anos antes e uma dúzia de anos depois este cenário parece impossível. Em meados dos anos 1990 as relações entre a Síria e a Turquia eram tensas tal como são agora..Houve um período em que a amizade entre os dois países vizinhos parecia possível. Em 1998, o presidente egípcio Hosni Mubarak mediou um acordo entre o pai de Bashar al-Assad, Hafez, e o homólogo turco Suleyman Demirel. O Acordo de Adana previa o desmantelamento de bases do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, que lutava pela autodeterminação dos curdos da Turquia) e a expulsão do seu líder, Abdullah Ocalan, da Síria, bem como autorizava o exército turco a entrar até cinco quilómetros em território sírio em perseguição de combatentes curdos. Em troca a Turquia retirava as tropas da fronteira e afastava o cenário de uma guerra aberta com Damasco, que naquela altura não podia contar com Moscovo, seu aliado desde os anos 1970..Ao acordo seguiu-se um momento de grande simbolismo, a presença do sucessor de Demirel, Ahmet Sezer, no funeral de Hafez al-Assad, em 2000. As relações passaram para outro nível com as visitas de Bashar a Ancara em 2004 e a de Sezer a Damasco no ano seguinte. Recep Tayyip Erdogan, o conservador islamista que fora autarca de Istambul já tinha consolidado a sua posição na política turca e era o primeiro-ministro do país..Além de Bashar al-Assad ter concretizado o acordo de Adana, ao deixar de apoiar grupos curdos e comunistas, seguiram-se acordos de comércio e de isenção de vistos, com as empresas turcas a entrar em força na economia síria..Assad dava sinais de querer acabar com o isolamento da Síria, mas a Primavera Árabe, iniciada em 2010 na Tunísia, iria eclodir nos meses seguintes na Síria com consequências dramáticas para a população. Às primeiras manifestações reprimidas pelo regime de Assad, Erdogan contactou com o presidente sírio e aconselhou-o a empreender reformas de forma a instaurar o "modelo turco", com a abertura a partidos islamistas. Assad rejeitou a proposta e a relação entre os dois acabou.."Fanático" e "sultão"."Mesmo antes da crise, Erdogan estava mais interessado na Irmandade Muçulmana do que nas relações sírio-turcas", disse Assad numa entrevista ao canal turco Ulusal, em 2013. De facto, em 2011, Erdogan, apesar de não ser árabe, era o líder mais bem visto no norte de África e no Médio Oriente - o farol de uma democracia moderna e ao mesmo tempo religiosa..E porque rompe Erdogan com Assad? Responde o presidente sírio na citada entrevista: "A mentalidade deste homem é a da Irmandade Muçulmana, e a partir da nossa experiência de mais de 30 anos na Síria com a Irmandade Muçulmana, eles são um grupo de oportunistas que usam a religião para proveito pessoal. Ele viu que os países que viveram revoluções ou golpes de Estado ou intervenções estrangeiras trouxeram ao poder grupos pertencentes à Irmandade Muçulmana. Portanto, viu aí uma grande oportunidade para permanecer no poder nas mais diversas formas por muitos anos.".Mais à frente, Assad questiona Erdogan: "Se Erdogan afirma que apresentou propostas para resolver o problema na Síria, então qual é a relação entre essas propostas e o apoio aos grupos armados? Hoje, Erdogan está a recrutar grupos armados com financiamento do Qatar, fornecendo-lhes armas, equipamento médico e outro apoio logístico em território turco, e depois enviando-os para a Síria. Esta proposta fazia parte das que ele me apresentou, ou eram uma mera fachada usada para alcançar os seus objetivos?".Em entrevista ao 60 Minutes, da CBS, em 2015, Assad volta à carga. "Erdogan é um fanático da Irmandade Muçulmana, é alguém que sofre de megalomania política, pensa que se tornou num sultão da nova era, do século XXI. Não só ignora os terroristas que vêm para a Síria como lhes dá apoio logístico e militar diretamente, numa base diária.".A república síria, longe de ser uma democracia, é secular e garante a liberdade religiosa, algo de que Assad se orgulha.."Terrorista".Ainda no outono de 2011 Erdogan dizia que conversações de paz na Síria só seriam possíveis sem Assad. E disse que se este não abandonasse o poder teria o mesmo destino de outros ditadores. "Se quer ver pessoas que lutaram até à morte contra o próprio povo, veja a Alemanha nazi, veja Hitler, veja Mussolini, veja Nicolae Ceausescu na Roménia", dirigindo-se a Bashar al-Assad. "Se não consegue extrair nenhuma lição destas pessoas então olhe para o líder líbio que foi assassinado há 32 dias", concluiu, em referência a Muammar Kadhafi..O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ahmet Davutoglu, o ideólogo no chamado neo-otomanismo, previa a queda do sírio em seis meses. Noutra ocasião, Davutoglu disse que preferia demitir-se a ter de apertar a mão a Assad. O dirigente entretanto saiu do governo e fundou um partido, em rota de colisão com Erdogan..Já presidente da Turquia, Erdogan viu a Rússia entrar no xadrez da guerra e a frustrar os seus planos. Os grupos extremistas que apoia contra Assad começam a perder terreno perante o poderio militar russo. A Irmandade Muçulmana foi deposta no Egito. As incursões do exército turco em Afrin e no norte da Síria são alvo de críticas, inclusive de países árabes. As relações com Emirados Árabes Unidos - uma controvérsia com ministro dos Emirados que criticou um governante otomano de maltratar árabes em Medina entre 1916 e 1919 - e Arábia Saudita - o assassínio do ativista saudita Jamal Kashoggi no consulado da Arábia em Istambul - também sofreram.."Assad é em definitivo um terrorista que praticou terrorismo de Estado. É impossível continuar com Assad. Como é que podemos encarar o futuro com um presidente sírio que matou quase um milhão de cidadãos?", disse em 2017 Erdogan, numa altura em que começaram a surgir vozes na Turquia a defender o reatar de relações. "É impossível a Turquia aceitar isto. O norte da Síria tornou-se num corredor de terror", disse sobre a "ameaça curda"..Xadrez russo.Ao ver que perdeu apoio entre os países árabes e com as relações com os EUA em contínua deterioração, também pelo apoio às milícias curdas no combate ao Estado Islâmico, Erdogan virou-se para o aliado do inimigo: Vladimir Putin..Primeiro, em dezembro de 2017, o presidente russo vendeu o sistema de defesa aéreo S-400 à Turquia. Algo impensável a um país membro da Aliança Atlântica e que deixou os norte-americanos de cabelos em pé. O vice-presidente Mike Pence disse que Ancara teria de escolher entre Washington e Moscovo e o Pentágono ameaçou a Turquia de bloquear a participação no projeto dos novos aviões F-35. Uma situação que não será pacífica entre os norte-americanos porque estão em jogo cerca de dez mil milhões de dólares..Seja como for, para o Kremlin só há vantagens: negócios de muitos milhões e perturbação entre os aliados da NATO. Ao ponto de em Moscovo Erdogan ser conhecido como "o nosso homem na NATO"..Em troca, e perante o anúncio de retirada dos EUA, o Kremlin avançou com a recuperação do Acordo de Adana. Nada disto é novo: há meses que Donald Trump ameaçava tirar os militares do norte da Síria e Moscovo já propusera em janeiro esta solução, que permitiria aos turcos atacar os curdos e depois retirar do território sírio..E se os líderes curdos e Damasco chegaram a um acordo isso deve-se a Moscovo. Que, por sua vez, tudo fará para que os exércitos turco e sírio entrem em confronto..Se Vladimir Putin conseguir alcançar a paz na Síria, irão Recep Erdogan e Bashar al-Assad reatar relações?