"O meu avô ficava de pé quando tocava na TV o hino no fim do discurso da rainha"
Entrevista a Mark Crathorne, vice-presidente da The British Historical Society of Portugal, sobre a rainha Isabel II e a monarquia inglesa.

© Paulo Spranger/Global Imagens
A monarquia é popular no Reino Unido?
É popular, e esta dinastia - Isabel II, os filhos e os netos - é popular. Já fizeram várias sondagens e nós não temos uma onda republicana, temos ainda um povo que quer manter a família real. Uma das grandes razões para isto é o comportamento e a personalidade da rainha Isabel II, que é uma pessoa 100% dedicada ao seu país e que também foi criada para isso. Ela assumiu o cargo e as responsabilidades era ainda muito jovem, com 26 anos, em 1952, e tem levado uma vida exemplar. Isabel II nunca deu uma entrevista na vida, é não partidária, é discreta, não expressa a sua opinião sobre política e os políticos, quer nacionais quer de outros países. Acho também que ela consegue unir o país nos momentos difíceis, manter e dar continuação a uma grande tradição que vem de há séculos, e o povo britânico tem orgulho em se identificar com essas tradições. Não é bom apenas para unir o país, mas também para o turismo e a notoriedade da Grã-Bretanha.
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Quando diz que a popularidade da monarquia é muito grande e a associa a Isabel II, acha que com Carlos e depois William, portanto já sem rainha, essa popularidade está garantida?
Eu penso que está garantida porque William também é popular. Ele tem levado uma vida pacata, sem escândalos, sem muito ruído. Tem três filhos que vão garantir a continuidade da linhagem, é casado com uma mulher [Kate Middleton] que também é popular. O povo gosta dela, é uma mulher mais normal, não é aristocrata com sangue azul, mas uma mulher que estudou, trabalhou.
Saltou Carlos...
Saltei Carlos, e saltei por duas razões. A rainha tem 94 anos, quem sabe se ela irá viver até à idade da mãe - 101 anos -, e Carlos já está nos 70, não sei se ficará muitos anos no trono. Eu acho que é mais a minha geração - tenho 63 anos -, mas ficámos um pouco abalados e com um pé atrás por causa da maneira como ele tratou a princesa Diana. A geração mais nova, a dos millennials, não liga tanto para isso porque acha que ele tem direito de se casar com quem ama.
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Diz que Carlos será sempre um rei efémero, porque ou subirá ao trono já muito velho ou, talvez, até o passe diretamente para o filho.
Eu acho que isso não vai acontecer, não vai passar o trono para o filho porque não é tradição. A rainha Isabel II podia ter-lhe passado o trono há muitos anos. Nós temos a expectativa de nos reformarmos com 67 anos, mas ela não, já tem 94. William também passou tempos difíceis por causa da morte da mãe, ele próprio disse que sofreu com problemas psicológicos. Além disso, está envolvido num trabalho com instituições de beneficência que trabalham com pessoas com traumas.
No fundo, William é o futuro da dinastia, mesmo que pelo meio exista Carlos?
Sim, essa é a minha opinião. Mas eu acho que a rainha ainda é muito querida e é exemplar. Ela paga impostos, porque a família real - a família Windsor - tem as suas propriedades que são grandes e que pagam impostos. Eu fiz alguns cálculos e, em relação a despesas para o contribuinte em 2019, foram 86 milhões de dólares. Se formos comparar com os gastos de campanhas, por exemplo, de Biden e Trump neste ano, que foram calculados em 14 mil milhões de dólares, este valor representa 160 anos de despesas com a monarquia britânica. Basicamente, para nós, há 160 anos que temos uma família real pelo custo de uma eleição de quatro em quatro anos dos americanos. É engraçado que 160 anos atrás era a véspera da posse de Abraham Lincoln, só para terem uma ideia de quantos anos tivemos por um preço relativamente barato. Isto representa por contribuinte, não por habitante, 1,36 euros . Se compararmos com o Mónaco, que são 1167 € por contribuinte, com a Noruega, que são 7,75 €, e a Holanda 2,20 €... Nós também temos uma população grande.
Portanto, têm a monarquia mais barata tendo em conta a população?
Por habitante, se calhar é, mas também a Suécia e a Bélgica não são caras.
Teve alguma ocasião de se cruzar com a rainha, de estar perto dela?
Sim. A primeira coisa que eu acho que é importante frisar é que eu só conheço uma rainha. Lembro-me, desde pequenino, no dia de Natal, sempre depois de almoço havia discurso da rainha às 15.00 em ponto.
Em que ano nasceu? Já Isabel II reinava?
Em 1957, já Isabel II era rainha há cinco anos. Eu lembro-me muito bem de irmos, com os meus avós, ouvir atentamente o discurso dela, e, até agora, eu gosto de o ouvir porque acho que ela é impecável. Ela consegue reunir histórias da família, da vida pessoal, dos netos e dos filhos - antigamente era das viagens, mas há muito tempo que não faz uma viagem de Estado -, depois fala sobre a política do país, das coisas boas e das fases menos boas, pois já vivemos fases terríveis de recessões, desastres, a morte de Diana, etc., e termina sempre com uma palavra de esperança. Ela é também uma defensora da fé e sempre levou Deus para a família dela e para o país. Lembro-me que o meu avô ficava de pé quando tocava o hino nacional no fim do discurso da rainha. Esta é a minha primeira memória, ver a rainha na televisão e o meu avô de pé a ouvir o hino. Lembro-me também da primeira vez que fui ao cinema e, no fim da última sessão da noite, tocar o hino nacional. Depois, o meu liceu, que era um liceu público fundado em 1509, e ao qual o rei Eduardo VI, em 1552, deu o seu alvará, tinha o brasão real por cima da porta por onde 600 ou 700 meninos entravam todos os dias. Portanto, eu via todos os dias o brasão da família real. Depois, com 18 anos, frequentei a Academia Militar de Sandhurst, e na nossa farda, no chapéu, o emblema era um ER - Elisabeth Regina - destacado. Um dia, estávamos a fazer um exercício e mandaram-nos parar e ficar absolutamente imóveis. Então, ouvimos um cavalo e apareceu a filha da rainha, a princesa Ana, porque o marido dela era instrutor da Academia. Foi a primeira pessoa da família real que eu vi. Depois, em Londres, houve uma vez em que vi a rainha passar no carro com a escolta atrás e fiquei feliz porque vi a cara dela. Em Londres também, com a minha mulher, em 2001, era a celebração dos 100 anos da rainha-mãe e vimos uma carruagem com a rainha-mãe e o príncipe Carlos, com a cavalaria atrás. Também vi o príncipe Carlos aqui em 2011. Finalmente, quando os meus pais fizeram as bodas de diamante - 60 anos de casados -, receberam um cartão da rainha assinado por ela, o que acho que é um toque agradável. Lembro-me também de os meus avós contarem que tinham sido convidados para uma garden party [festa no jardim] no Palácio de Buckingham. De modo que, em família, ouvimos a rainha e vemos a rainha, e eu passava por baixo do brasão todos os dias até terminar o liceu.
Esta série, The Crown, da qual se inicia agora a quarta temporada, chegou a vê-la alguma vez?
Eu vi a primeira temporada e gostei imenso. Foi só por falta de tempo que ainda não vi mais.
Quando pensa na história do país, considera que a série é fidedigna?
Repito que só vi a primeira temporada, mas acho que era fidedigna e que a Claire Foy representou o papel da rainha fantasticamente em todos os pormenores, os tiques, a maneira de falar, as expressões, aquela frieza real. É também uma história interessante, a morte de Jorge V, a coroação da rainha, o Winston Churchill... Se o príncipe Filipe foi tão bem representado, já tenho as minhas dúvidas. Já estamos na quarta temporada e eu pergunto: será que qualquer outro monarca ou chefe de Estado é capaz de alimentar quatro anos de uma série? Talvez não. E gostaria de lembrar que há 16 países independentes que optaram por manter a rainha Isabel II com o chefe de Estado, vai desde o Canadá à Austrália.
Há duas rainhas que têm muito que ver com a história de Portugal e de Inglaterra. Por um lado, Filipa de Lencastre, uma inglesa que veio para cá e que dá origem à Ínclita Geração; depois, há Catarina de Bragança, que ficou, pelo menos, com a fama de levar o chá para Inglaterra, e um pormenor muito falado, que é ter levado Bombaim no dote. O que é que lhe dizem estas duas rainhas?
É engraçado que há 300 anos de diferença entre elas. Filipa de Lencastre foi uma grande mulher. Ambas tiveram casamentos de conveniência, mas o de D. Filipa com D. João I parece que foi um casamento de sucesso, tiveram oito filhos, dos quais o terceiro foi o famoso infante D. Henrique. É importante também porque o casamento deles em 1386 foi um ano depois de Aljubarrota, foi a segunda vez que tropas inglesas fizeram uma aliança com a coroa portuguesa. A primeira foi em 1147, quando os cruzados ingleses ajudaram D. Afonso Henriques a tomar o Castelo de São Jorge em Lisboa. A grande aliança entre Portugal e a Grã-Bretanha começou em 1373, antes do casamento de Filipa de Lencastre e D. João I. Depois, o Tratado de Windsor foi assinado no casamento em 1386. Temos mais de 630 anos de aliança, o que é importante. Temos de lembrar que, mais recentemente, durante a Guerra das Malvinas, os aviões britânicos foram para as Lajes; na Segunda Guerra, Salazar foi quase obrigado, digamos assim, a ceder uma pista de aviação; na Primeira Guerra, as tropas portuguesas foram para o desastre da batalha de La Lys. Antes, nas Invasões Francesas, a Grã-Bretanha prestou apoio. Catarina de Bragança casou-se em 1662 e dizem que Carlos II, apesar de nunca ter visto a futura noiva antes do casamento, amava Catarina, mas sabemos que não tiveram filhos. Era mais um casamento de conveniência porque ela trouxe um dote enorme com dois milhões de cruzados, Bombaim, Tânger. Eu sou da geração em que Bombaim ainda era Bombay - a junção da palavra portuguesa "bom" e da inglesa "bay" [baía]. Não se pode dizer que ela levou o chá, mas instituiu o costume de tomar chá, que perdura até hoje, com paragens para o chá na tropa, nas fábricas, etc. Mas não foi só, levou também a marmelada, mas como não havia marmelos em Inglaterra e havia imensas laranjas importadas ela decidiu fazer a marmelada com laranja. A marmelada já era conhecida na Inglaterra antes, porque Henrique VIII, em 1524, recebeu como presente uma caixa de marmelada. Há uma coisa que as pessoas não sabem muito - Catarina de Bragança, que era mais educada, em boas maneiras e comportamento na corte, foi quem introduziu o costume de utilizar um garfo além de uma faca. Os ingleses comiam com uma faca e pão e as mãos. Ela introduziu o costume de se comer com talheres. Portugal tinha uma das famílias reais mais ricas da altura.
Como é relação entre a rainha e a comunidade britânica em Portugal?
Há duas organizações que têm o direito de levar a palavra "royal". Uma é o Royal British Club, que é quase uma espécie de feitoria. Em 1903, Eduardo VII, recém-coroado, veio visitar o seu primo D. Carlos e concedeu-lhe o direito de usar a designação. Também há a Royal British Legion, que está espalhada por todo o mundo e que é, basicamente, para os veteranos de guerra. Também a embaixada britânica tem o costume, no mês de junho - neste ano não - de ser anfitriã da Queen's Birthday Party [Festa de Aniversário da Rainha], nos jardins da residência oficial. Depois, em todas as igrejas anglicanas em Portugal - Lisboa, Porto, Funchal, Caldas da Rainha, Algarve -, durante as orações rezamos sempre por Isabel II e a seguir por Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República. No domingo mais próximo do dia 11 de novembro, há sempre uma missa em honra dos mortos na guerra, e é sempre tocado o hino nacional, God Save the Queen, em homenagem aos mortos. Esta cerimónia repete-se também num sítio muito especial que é um baluarte nas fortificações de Elvas na fronteira, onde há um pequeno cemitério para os oficiais ingleses que foram mortos durante as Invasões Francesas em 1811 e 1812. Repete-se ali a mesma cerimónia ao ar livre. Repete-se no mundo inteiro no dia 11 de novembro ou no domingo mais próximo desse dia. Destaco aí duas associações anglo-lusas, a Associação dos Amigos do Cemitério dos Ingleses, em Elvas, e a The British Historical Society of Portugal. Mas há outra história sobre a rainha que gostaria de contar, e que me foi contada aqui em Portugal. Quando a rainha veio a Lisboa, em 1957, desembarcou ali no Terreiro do Paço. Foi um barco antigo a remos buscá-la ao iate real e ela foi recebida pelo presidente Craveiro Lopes. Depois havia uma ópera no São Carlos; o meu sogro contou-me que quando as luzes baixaram para o início do espetáculo parecia que ainda havia luzes acesas. Havia tantas joias das senhoras portuguesas, que estavam tão contentes por sair à noite para festejar a visita da rainha, que tudo brilhava como se estivesse iluminado.
Perfil
Mark Crathorne é vice-presidente da The British Historical Society of Portugal. Nasceu em Inglaterra em 1957. Vive há 31 anos em Portugal. Casado com uma portuguesa, tem dois filhos. Fala fluentemente português. Optou por Portugal após ler um artigo na The Economist sobre as novas oportunidades para o país criadas pela adesão à CEE, em 1986. Fez tropa voluntária no Exército Britânico. Fez licenciatura e mestrado na Universidade de Cambridge em Economia, com especialização em Economia e Desenvolvimento Territorial. Foi gestor de propriedades agropecuárias no Brasil antes de vir para Portugal. Foi consultor de gestão e gestor em Portugal antes de ser contratado como cônsul britânico em Lisboa, o primeiro não diplomata de carreira em mais de 100 anos. É professor de Gestão no ISEG - Lisbon School of Economics e Management.
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