A Igreja portuguesa chega ao Vaticano sem ter atendido ao pedido do Papa Francisco para ouvir as vítimas de abusos sexuais. Desde que se soube desse pedido, para preparar a reunião que Francisco convocou para o Vaticano, de 21 a 24 de fevereiro, que o cardeal-patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Manuel Clemente, apenas manifestou disponibilidade para receber essas vítimas, mas não as procurou ativamente..O Papa quer ouvir bispos de todo o mundo sobre a "proteção de menores", como anunciou em setembro passado o Conselho de Cardeais. Mas o bispo de Roma procurou retirar pressão ao encontro inédito, afirmando que há "expectativas exageradas" sobre o que pode sair dali. Para Francisco, a prioridade é que os bispos tenham consciência do "sofrimento terrível" das vítimas. Assim, os bispos terão "uma catequese sobre este problema", para que cada um saiba o que fazer em cada momento..Na antecipação da reunião, a comissão organizadora pediu aos bispos que fossem ouvir as vítimas. O presidente do organismo que congrega os bispos portugueses começou por não seguir este conselho. Uma e outra vez, o porta-voz da CEP reiterou que o patriarca de Lisboa está disponível para ouvir, mas não as procurou ativamente. Em Portugal, desde 2001, "há uma dezena de casos" identificados, disse. Segundo uma investigação do Observador, há pelo menos nove vítimas cujas identidades são conhecidas do episcopado. E há três casos que a Igreja terá escondido nestes 15 anos.."Os bispos, incluindo D. Manuel Clemente, como presidente da Conferência Episcopal, continuam sempre com disponibilidade ativa, repito - queria que fosse bem interpretado nessa expressão -, para escutar as presumíveis vítimas de abusos sexuais por parte dos clérigos, segundo as diretrizes de 2012", sublinhou aos jornalistas na terça-feira passada o padre Manuel Barbosa, no final da reunião do Conselho Permanente da CEP, em Fátima..As diretrizes a que se refere Manuel Barbosa constam de um texto dos bispos portugueses de 2012 que estabelece "orientações ou parâmetros para o procedimento a adotar em caso de conhecimento de factos que indiciem ou evidenciem situações configuráveis como abuso sexual de menores"..No verão passado, quando das denúncias públicas do arcebispo Carlo Maria Viganò que implicavam diretamente o Papa no suposto encobrimento do caso de um cardeal - manobra associada a tentativas de integristas e da extrema-direita católica em minar a abertura de Francisco em questões de moral sexual e de refugiados e migrantes -, bispos portugueses disseram-se do lado do Papa..A 31 de agosto de 2018, o bispo de Aveiro, António Moiteiro Ramos, falou de uma "campanha orquestrada contra o Papa Francisco" e anunciou que "tudo" seria feito "para que estes crimes sejam abolidos da sociedade"..Dias depois, um padre da diocese, João Alves, questionava o empenho dos bispos na prevenção dos casos. "Não se pode dizer que se está com o Papa Francisco e a prática da Igreja em Portugal não ser preventiva. Não estamos a falar apenas de denúncia de casos de abusos, mas de evitar que essas situações aconteçam", apontou no Público..Seminaristas expulsos de seminários portugueses por comportamentos impróprios foram acolhidos e ordenados em dioceses na Itália e nos Estados Unidos sem qualquer pedido de informação prévia - e sem sombra de pecado..O porta-voz da CEP garantiu ao DN que há "muito rigor" na formação de seminaristas e que, sobre estes casos concretos, "há uma falha" que importa não repetir. São "casos pontuais", assegurou por sua vez o pároco da Vera-Cruz, Aveiro, notando que as exceções não fazem a norma. As situações que João Alves relatou "não são predominantes nem é a prática comum". E este padre, que também já teve a seu cargo a formação no seminário, não acredita que o reduzido número de casos que tiveram seguimento seja "negligência dos tribunais eclesiásticos"..Para João Alves, a Igreja portuguesa tem de "criar esquemas de defesa da vítima" e "uma forma de que as coisas sejam investigadas e, em caso de crime, as coisas possam seguir o âmbito civil". No fundo, é aquilo que o Papa pede para a reunião de Roma: procurar respostas para que esta mancha não alastre..É também esta a dificuldade da Igreja em Portugal. No caso do padre do Fundão, condenado a dez anos de prisão por abusos, o bispo da Guarda, Manuel Felício, pediu em 2013 um parecer ao seu jurista canónico sobre se o testemunho de outro sacerdote, que era diretor espiritual e ouviu as denúncias das vítimas, podia ser tido em conta pelas autoridades civis.."Os confessores e o diretor espiritual, em razão da sua missão, estão obrigados a sigilo sacramental, os primeiros, e o segundo a um 'segredo qualificado'", escreveu o jurista, num texto revelado pelo Observador , recordando que a Igreja pune com a excomunhão a violação desse sigilo e sublinhando que o diretor espiritual devia ter invocado a sua função para "guardar segredo nos termos do Código do Direito Canónico, da Concordata da Santa Sé com o Estado Português e da Lei da Liberdade Religiosa"..Este parecer é posterior às diretrizes que os bispos aprovaram em 2012, onde definiram que "cada pessoa jurídica canónica cooperará com a sociedade e com as respetivas autoridades civis; tomará em atenção todas as indicações que lhe cheguem e responderá com transparência e prontidão às autoridades competentes em qualquer situação relacionada com abuso de menores". De Roma esperam-se respostas mais claras.