Numa carta aberta publicada na revista Nature, 24 cientistas de todo o mundo - Portugal incluído - instam a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas a adotar uma V Convenção de Genebra que qualifique a destruição da biodiversidade em zonas de conflitos armados como crimes de guerra. Para o efeito, está a circular uma petição que reúne já perto de 79 mil assinaturas; o objetivo é alcançar 80 mil..Além destas duas iniciativas, os cientistas criaram uma nova designação, "ecocídio" (extermínio do meio ambiente), que querem ver equiparada a genocídio. É objetivo da comunidade científica que esta denominação passe a ter enquadramento legal..As Convenções de Genebra e os seus protocolos adicionais compõem o núcleo do direito internacional humanitário, o ramo do direito internacional que regula a condução dos conflitos armados, procurando limitar os seus efeitos. Protegem especificamente as pessoas que não participam das hostilidades (civis, profissionais da saúde e humanitários) e as que deixaram de participar, como os soldados feridos, enfermos e náufragos e os prisioneiros de guerra. As convenções e os seus protocolos estipulam medidas a ser tomadas para evitar ou colocar um fim em todas as violações. Contêm normas estritas para lidar com as chamadas "infrações graves". Os indivíduos responsáveis pelas infrações graves devem ser encontrados, julgados ou extraditados, seja qual for a sua nacionalidade.."Pedimos aos governos que definam normas explícitas para salvaguardar a biodiversidade e usem as recomendações da Comissão para estabelecer uma Quinta Convenção de Genebra que proteja o ambiente durante os confrontos armados", lê-se na carta aberta. "A circulação descontrolada de armas exacerba a situação, ao conduzir, por exemplo, à caça insustentável da vida selvagem", acrescenta-se na missiva..Intitulada "Stop military conflicts from trashing environment" (Impeçam os conflitos armados de destruir o meio ambiente, em tradução livre), a iniciativa é encabeçada por Sarah M. Durant, da Sociedade Zoológica de Londres, e José Carlos Brito, da Universidade do Porto (UP)..Os 22 signatários adicionais, entre os quais Hugo Rebelo, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, também da UP, são afiliados a organizações e instituições no Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Hong Kong, Marrocos, Mauritânia, Líbia, Níger e Reino Unido..A adoção de uma convenção focada na biodiversidade "estabeleceria um tratado multilateral e instrumentos legais para a proteção de recursos naturais cruciais", explica-se na carta. Destaca também a importância de empresas e governos colaborarem para regular a transferência de armas e responsabilizarem a indústria militar pelo seu impacto no meio ambiente..Em declarações ao Diário de Notícias, o investigador Hugo Rebelo disse esperar que com esta iniciativa os governos transponham as proteções ambientais para o direito internacional, ajudando a proteger espécies ameaçadas, e também a apoiar as comunidades rurais, durante e após os conflitos, cujos meios de subsistência estão à mercê da destruição ambiental a longo prazo.."As consequências devastadoras dos conflitos armados no mundo natural estão bem documentadas, destruindo os meios de subsistência de comunidades vulneráveis e levando muitas espécies, já sob intensa pressão, à extinção", alerta Sarah M. Durant na carta aberta à ONU..O gatilho da iniciativa.A ideia de incluir a proteção do meio ambiente nas Convenções de Genebra surgiu pela primeira vez durante a guerra do Vietname, quando os militares dos EUA usaram grandes quantidades de "agente laranja" para dizimar milhões de hectares de floresta, com consequências adversas a longo prazo na saúde humana, na vida selvagem e na qualidade do solo..O trabalho dos cientistas neste sentido intensificou-se no início dos anos 1990, quando o Iraque queimou poços de petróleo no Koweit e os EUA dispararam bombas e mísseis com urânio empobrecido. Como relatado por vários meios de comunicação em 2014, os investigadores sugeriram então que a radiação proveniente dessas armas envenenou o solo e a água do Iraque, tornando o ambiente cancerígeno.."Os efeitos dos conflitos armados na biodiversidade foram comprovados recentemente na região do Sara-Sahel, onde chitas, gazelas e outras espécies sofreram uma rápida perda populacional devido à disseminação de armas após a guerra civil na Líbia. Os conflitos no Mali e no Sudão correlacionaram-se com um aumento nas mortes de elefantes", prosseguiu Hugo Rebelo..As guerras causam uma pressão adicional à vida selvagem, desde o Médio Oriente até África. "É urgente um compromisso global para evitar a extinção da fauna emblemática", acrescentou o investigador português..Num cenário de guerra, o ambiente pode ser considerado uma "baixa" menor, mas quando combinado com a falta de tomada de decisões democráticas e bem informadas, os conflitos prolongam o sofrimento humano e minam as bases para o progresso social e a segurança económica, evidenciou.."O meio ambiente é raramente tido em conta em tempos de guerra, sobretudo quando o foco são as populações, as fronteiras e os regimes no poder. Mas, considerando que é fulcral proteger a Terra se quisermos continuar a sobreviver como espécie, e coincidindo com as novas reuniões iniciadas neste verão pela ONU para estudar adendas às Convenções de Genebra, consideramos ser este o momento para pressionar o organismo internacional a adicionar linguagem para proteger o ambiente em tempos de guerra", lê-se ainda na carta.."Apesar dos sucessivos apelos para uma V Convenção de Genebra, os conflitos militares continuam a destruir a megafauna, levando espécies à extinção, e envenenando os recursos hídricos", prossegue a missiva. "A circulação descontrolada de armas exacerba a situação, conduzindo, por exemplo, à caça insustentável da vida selvagem.".Hugo Rebelo, além de signatário, colabora estreitamente com um dos mentores deste movimento, desenhando mapas e fazendo estatísticas do material que é enviado do deserto do Sara pelo biólogo..José Carlos Brito, que se encontra a desenvolver pesquisas na Mauritânia, trabalha há mais de 20 anos no terceiro maior deserto da Terra, e verificou que, desde o colapso do regime do líder líbio Muammar Kadhafi, grande parte do Sara ficou inacessível para os investigadores, sobretudo por questões de segurança. O mesmo se verifica no Níger e no Mali. Organizações não governamentais no terreno enviam com regularidade fotografias de massacres da vida selvagem, causados principalmente pela caça ilegal a animais de grande porte. "Em zonas de conflito, não há lei, daí os negócios paralelos, como o comércio ilegal de armas. Várias pessoas com quem colaboro no Sara enviam dados que atestam o declínio da megafauna naquela região", conta ainda Hugo Rebelo..O grande objetivo desta iniciativa "é fomentar um movimento internacional que pressione as Nações Unidas a regular o conceito de "ecocídio", para que comece a haver repercussões no que concerne a crimes contra o meio ambiente", enfatizou o especialista..Por parte das Nações Unidas, acrescentou, "apenas silêncio", mas "os cientistas não irão baixar os braços e prometem fazer barulho", concluiu.