Devendra Banhart nasceu no Texas há 38 anos, mas foi na Venezuela, país natal da mãe, que passou toda a infância, num período em que amiúde a sua memória regressa, especialmente agora. A crise humanitária do país aflige alguns familiares diretos e tornou-se um cavalo de batalha para o artista, que lidera uma campanha de angariação de fundos internacional, para adquirir bens essenciais, como fez questão de referir nesta entrevista ao DN..Não por acaso, o espanhol é uma das línguas (tal como o inglês e o português) em que voltou a cantar em Ma, o décimo álbum de originais, editado há poucas semanas e já considerado pela crítica um dos melhores da safra de 2019. Bastante mais intimista e emocional, o disco representa uma mudança de registo em relação aos trabalhos anteriores, em especial quando comparado com o muito mais eletrónico Ape in Pink Marble, de 2016, ou seja, totalmente o posto das cordas, sopros e teclados com que constrói este Ma..Foi só depois de regressar aos Estados Unidos, já na adolescência, que começou a fazer música. Deu-se a conhecer em 2002, com The Charles C. Leary, um álbum lançado pela editora de Michael Gira, o líder dos Swans, que compilava alguns temas feitos nos anos anteriores. Desde então, editou mais oito discos, mas foi com What Will We Be (2009) e especialmente com Mala (2013) que se afirmou como um dos mais talentosos escritores de canções deste início de século, muito à custa da mistura de folk e psicadelismo do seu hipnótico rendilhado de guitarra e voz..Pelo meio, colaborou com nomes como Antony and the Johnsons, Beck, Vashti Bunyan, Os Mutantes, Gilberto Gil ou Caetano Veloso. Em paralelo, dedica-se à arte e muitos dos seus desenhos e pinturas já foram publicados em livro e estiveram expostos em locais como o San Francisco Museum of Modern Art ou o Los Angeles Museum of Contemporary Art. Em abril, editou o primeiro livro de poesia, concretizando assim outro sonho antigo. Um artista quase completo, ou, antes, "em permanente construção", como o próprio afirma com humor, que no próximo ano vem a Portugal apresentar Ma, em dois concertos marcados para os dias 15 e 16 de fevereiro, no Hard Club, no Porto, e no Capitólio, em Lisboa..Este disco tem um ponto de partida algo sui generis, um templo budista em Quioto, no Japão, onde gravou uma primeira canção? Como é que esse momento acabou por dar direção a Ma? Foi o ambiente daquilo, tão em harmonia com tudo, sem qualquer distinção entre estar fora ou dentro. Consegui essa oportunidade através de uma amiga que dá aulas numa universidade em Tóquio, tínhamos apenas uma hora para tocar e gravar. Fizemo-lo no zendō, que é uma área especial de meditação. Nessa altura ainda não tinha qualquer conceito na cabeça, isso só surge quando regresso aos Estados Unidos, para gravar o resto do disco. O engraçado é que essa canção, que acabou por dar toda uma direção a este trabalho, acabou por nem sequer entrar no álbum..O que é este Ma, que dá título ao álbum? Trata-se de uma filosofia japonesa relacionada com todos os aspetos da vida. É como uma pausa no tempo, um intervalo ou vazio no espaço. No fundo, tem que ver com o tempo e o espaço fundamental que a vida precisa para crescer e evoluir. Esse foi o meu ponto de partida, mas depois, quando vim para casa, comecei a reparar que quase todos os meus amigos têm filhos e o tema da maternidade começou a tomar forma na minha cabeça. Até porque a palavra ma significa mãe em diversas línguas e também se refere a alguém que admiramos ou temos como modelo. Refiro-me à maternidade num sentido mais amplo, à natureza incondicional do amor materno, ao desejo de cuidar, de passar sabedoria e conhecimento, ao estabelecer de ligações. O tema central é a comunicação entre pais e filhos, no fundo é como se estivesse a apresentar-me a um filho imaginário, a dizer-lhe quem sou através deste disco..É por isso que este disco parece ser tão pessoal? Não sei se é assim tão pessoal. É, isso, sim, um álbum sem personagens, ao contrário do meu álbum anterior, no qual contava diversas histórias, passadas num hotel decadente, algures em Tóquio..Mas há alguns temas claramente mais pessoais, como Memorial ou October 13... O primeiro tem que ver com a perda de três pessoas muito importantes para mim num curto espaço de tempo, uma delas, o meu pai. Ainda só a toquei uma vez ao vivo, num espetáculo em Hamburgo, Alemanha, e chorei tanto enquanto cantava que se tornou embaraçoso para toda a gente (risos). A segunda também tem que ver com alguém que eu conhecia e morreu de cancro. Sim, são ambas pessoais, mas também são dúbias e subjetivas o suficiente para cada um as interpretar da maneira que bem entender..Há pouco tempo, numa entrevista, o músico brasileiro Tim Bernardes dizia que adora quando as pessoas transformam em algo alegre músicas que inicialmente foram escritas devido a situações tristes, concorda? Antes de responder a essa questão e isto é talvez a coisa mais importante que vou dizer nesta entrevista, tenho de dizer que o Tim Bernardes é um dos mais talentosos escritores de canções que alguma vez ouvi. Vi-o ao vivo há pouco tempo e considero-o um génio. E, sim, concordo com ele, é fascinante quando alguém pega numa canção nossa, escrita inicialmente com um sentido e lhe dá outro. Essa é a grande maravilha da arte, ser tão subjetiva, ao ponto de cada um a interpretar de forma diferente, consoante, até, o estado de espírito de cada um num momento específico..Este é também um álbum muito mais orgânico, em termos musicais, feito com instrumentos reais, em vez da parafernália de sintetizadores do anterior disco. É também, por isso, um regresso às suas origens mais folk? Nem por isso, tem mais que ver com o facto de este disco ter sido gravado numa floresta junto ao Pacífico, no centro da Califórnia, sem qualquer tipo de distrações mundanas à nossa volta. Esse ambiente mais orgânico que vivemos por lá tornou-se óbvio em todo o disco, através desses tais instrumentos reais..Referiu há pouco que o conceito de ma também tem que ver com alguém que admiramos ou temos como modelo. Quem é a sua ma, então? Essa é uma excelente pergunta, em que tenho pensado muito ultimamente, porque faz parte da minha prática diária ver essa ma em toda a gente. Mas confesso que ainda não consigo na totalidade, é muito difícil fazê-lo nestes tempos em que vivemos..Envolveu-se diretamente na questão da ajuda humanitária à Venezuela, onde grande parte da sua família vive... Sim, vive lá o meu irmão, bem como tios, tias e diversos primos. Estou a tentar criar uma comunidade para ajudar a população, que é quem mais sofre com toda esta situação. Já fugiram quatro milhões de pessoas do país, mas nem toda a gente consegue sair e para esses a situação é ainda mais trágica. Aliás, a situação é tão trágica, a todos os níveis, que nos sentimos mesmo indefesos. Consegui fazer chegar lá alguns medicamentos, que o meu irmão tentou levar a um hospital, mas foi parado pelos militares, que lhos apreenderam. Neste momento falta comida e as coisas mais básicas para se sobreviver, por isso vou continuar com esta campanha nos meus concertos..Foi também por isso que voltou a cantar em espanhol neste disco? Isso teve mais que ver com o ambiente em que este disco foi feito. Como não tive nada com que me distrair fui obrigado a centrar-me mais no meu mundo, nos meus irmãos, na minha mãe, na minha infância e isso fez-me voltar a escrever em espanhol..Em alturas como essa é importante que os artistas façam ouvir a sua voz? Fazer arte já por si é um ato político, não creio que, para um músico, por exemplo, seja preciso estar sempre a fazer canções de protesto muito óbvias para fazer passar a mensagem, até porque o efeito pode ser o contrário. Em respeito a esse assunto dou sempre o exemplo do Chico Buarque, que era muito subtil nas letras e assim conseguia ser muito mais subversivo do que outros artistas seus contemporâneos. Todos nós, artistas ou não, temos a responsabilidade de nos tratarmos bem uns aos outros, isso é o mais importante..Nos tempos que correm isso é quase um ato político, sentir compaixão pelo próximo... Sem dúvida, era tão bom que os políticos começassem por aí..Por falar em Chico Buarque, tem uma canção, cantada em português, com o mesmo título de uma música dele, Carolina? Sim, essa canção é de facto uma homenagem à do Chico Buarque, apesar de eu pensar que a versão do Caetano Veloso é melhor do que a original (risos). Convém, no entanto, dizer que eu não sei falar português e se soar mal a culpa é do Rodrigo Amarante (músico brasileiro de Los Hermanos e da Orquestra Imperial, entre outros projetos), foi ele quem me ensinou a cantar em português..Pode-se dizer que Ma é um disco feminino? Sim, mas sem ser de género, porque tem que ver com o tal sentido mais lato da maternidade. Todos nós, homens ou mulheres, temos esse lado feminino. Faz parte de nós enquanto seres humanos..O último tema do álbum, Will I See You Tonight, é um dueto com a lendária cantora folk inglesa Vashti Bunyan, de quem é um grande admirador. Que importância teve esse momento? Representou um enorme desafio porque ela, sim, é o verdadeiro arquétipo do que é ser uma grande ma. É uma pessoa que me inspira e conforta nas situações mais diferentes da minha vida. Por exemplo, mal soube da eleição de Trump, a primeira coisa que fiz foi ir ouvir a música dela e da Joni Mitchell. Sempre que alguém como Trump, Bolsonaro ou Maduro chegam ao poder tenho a mesma sensação de uma criança que se perde dos pais numa feira. Quando era pequeno isso era o que mais me assustava, sentia o chão a fugir-me debaixo dos pés, exatamente como sinto hoje cada vez que assisto a um noticiário na televisão.