Governadora-geral do Canadá entre 1999 e 2005, Adrienne Clarkson foi a segunda mulher a ocupar o cargo de representante da Rainha naquele país. E a primeira oriunda de uma minoria. Filha de refugiados nascidos chineses, nascida em Hong Kong e chegada com a família ao Canadá com apenas dois anos, Adrienne garante sentir-se canadiana e não chinesa..Feminista, defensora do papel das mulheres na sociedade - ainda se espanta como, apesar de tanta tecnologia, continuamos dependentes do corpo da mulher para gerar vida - admite que a política ainda é muito um mundo de homens..Jornalista durante muitos anos, não poupa críticas a Donald Trump e à era das fake news que o presidente dos EUA tão bem personifica. Aos 80 anos, a antiga governadora-geral não esconde o orgulho no seu país e na sua tradição de inclusão. Sobre o vizinho do sul, gosta de sublinhar as diferenças. A começar pelas origens. O Canadá, diz, é um país de gente pobre, os EUA foram criados por cavalheiros ingleses que construíram a sua riqueza graças aos escravos..Quando em criança viu passar a comitiva da então princesa Isabel pelas ruas de Otava, alguma vez imaginou vir a ser a representante da monarquia no Canadá? Não, nunca. Assisti a várias visitas reais, incluindo a da princesa Isabel, mas nunca imaginei tal coisa porque os governadores-gerais eram sempre homens brancos e velhos. [Dá uma gargalhada] Eu fui a segunda mulher governadora-geral. A primeira só foi nomeada em 1984. Foi muito tempo à espera. Agora vamos na quarta mulher no cargo. Eu fui a 26.ª governadora-geral do Canadá. Antes de mim, 24 tinham sido homens brancos e velhos. É uma daquelas coisas com que não se sonha. Ainda hoje. Não se estuda para ser governador-geral - é basicamente uma nomeação do governo do Canadá. A rainha só assina por baixo. Ela não nos conhece, não nos faz uma entrevista. É uma relação muito cerimonial. Nós representamos tudo o que tiver que ver com a Coroa. E a Coroa é o último representante do povo. Até em termos judiciais, a Coroa representa os interesses do povo. É uma grande honra..Na altura, mudou bastante esse papel, tornou-o mais moderno, mais ativo. Sim, fui uma das governadoras-gerais mais ativas. Senti que era necessário. E também devo ser das mais ativas antigas governadoras-gerais [ri]. Passaram 20 anos desde que fui nomeada e 14 desde que saí. Nesses cinco anos, tentei ser o mais ativa possível para os canadianos verem que a pessoa que assina as suas leis, que está na abertura do Parlamento, que faz essas coisas cerimoniais, que é a chefe das Forças Armadas, também está com o povo. E um dos meus grandes interesses foi pôr a ênfase no norte. O norte é uma das nossas glórias: o Ártico, o povo inuíte. Temos algo que é muito raro e especial. Não vivemos num sítio com palmeiras! Não temos esse tipo de clima. Temos uma forma diferente de ver as coisas porque somos do norte e temos de conviver com um clima inóspito. O que nos torna mais fortes. Mas não está sempre frio. Os verões podem ser muito quentes. É um clima de extremos. Podemos jogar ténis no exterior, nadar, mas também patinar ou esquiar..A sua história pessoal - nascida em Hong Kong, filha de refugiados chineses - influenciou a forma como viveu e o seu legado? Sei que quando era governadora-geral recebeu uma carta de uma menina luso-canadiana a dizer: "Se conseguiu, eu também consigo"....Quando me tornei governadora-geral recebi muitas cartas de crianças, porque elas aprendem na escola o papel de governador-geral por volta dos 8, 9, 10 anos. Uma das cartas era de uma menina portuguesa, de apelido Sousa, que dizia que, agora que eu tinha sido nomeada governadora-geral, ela também podia ser. Achei maravilhoso! Foi por isso que viajei por todo o país, que me encontrei com tantas pessoas quanto possível. Para que vissem que se pode chegar sem nada e alcançar o mais alto cargo do país. Vai encorajar as meninas portuguesas a procurarem mais educação, a terem parâmetros mais elevados do que os pais pensaram para elas. Quando as pessoas chegam ao Canadá, vindas de países diferentes, com raízes diferentes, valores diferentes, é muito importante que as mulheres recebam a ajuda de outras e tenham exemplos. E eu sou um exemplo. Sou uma mulher que veio de um lugar onde as mulheres geralmente não assumem esse papel. E as mulheres não chegam a esses cargos a não ser que lutem por eles..Essa forma de inclusão - de receber quem chega, respeitando as suas raízes e tradições - é muito característica do Canadá? O que o Canadá consegue fazer pelas pessoas é deixá-las vir para cá. Eu sinto uma ligação com o facto de ser chinesa. Mas não me sinto chinesa, nem me identifico com nada na política chinesa. Sou canadiana. Gosto de comida chinesa, claro. Mas o Canadá formou-me. Sou canadiana. Quando fui à China - e fui lá três vezes - senti que há uma ligação, mas não há uma identificação. Identifico-me com outros canadianos. Mesmo que sejam de origem italiana ou portuguesa. Somos todos canadianos. Sou membro do Centro Global para o Pluralismo e é uma organização lançada pelo Aga Khan, que é ismaelita, e pelo governo do Canadá. No Canadá recebemos 20 mil ismaelitas em 1972 e só havia uns mil muçulmanos no país até então. Recebemos estas pessoas vindas da África Oriental e foi maravilhoso. Acrescentou imenso às nossas vidas. Cada grupo de pessoas que chega faz o seu caminho no Canadá mas não perde aquilo que é. Posso levá-la a zonas de Toronto onde só se fala português. Em Dundas Street pode fazer qualquer coisa em português: comprar casa, beber um café, etc. A educação pública que temos permite que quem trabalha, quem chega sem nada, tenha acesso e não fique para trás. O nosso sistema de saúde e as nossas infraestruturas são ótimos. Fazemos muito pelos imigrantes, fazemos muito pelos refugiados. E queremos que eles construam o nosso país..Ter uma mulher num papel como o de governadora-geral traz uma nova forma de fazer as coisas? Claro que sim. Uma mulher num papel que foi criado por homens vai sempre tentar ser diferente. Se for casada e for governadora-geral, tem filhos e netos - eu tive o primeiro neto quando estava em Rideau Hall - e temos um ponto de vista diferente quando somos uma mulher que foi mãe. As mulheres têm uma grande vantagem: porque conseguem dar à luz e podem, basicamente, controlar a vida. A mulher detém as chaves da vida. Se as mulheres recusassem ter filhos, a raça humana ia extinguir-se. Não é deixar de fazer sexo, é deixar de ter filhos. Se as mulheres todas dissessem que não iam ter mais filhos até as guerras todas acabarem, seria uma coisa muito poderosa. No outro dia estava a pensar que, com toda a tecnologia que há hoje, continuamos a depender do corpo das mulheres para ter filhos. E isso torna as mulheres muito especiais..Apesar de ter havido quatro mulheres governadoras-gerais, o Canadá nunca teve uma primeira-ministra eleita. A política ainda afasta as mulheres? A política é uma vida difícil para as mulheres. Há tanto escrutínio público. É um mundo que tem sido dominado pelos homens. Até nas coisas práticas. Até as sessões no Parlamento! Ainda hoje há sessões à noite... como é que se pode ter filhos pequenos e ir a uma sessão noturna no Parlamento? Pelo menos alguns dos Parlamentos das nossas províncias já acabaram com essas sessões. Isso tornou mais fácil para mulheres mais jovens entrarem na política, mesmo que queiram ir jantar com os filhos. Claro que os homens também deviam querer isso. Mas é outra questão. É importante que as mulheres mudem as coisas para as adaptarem à sua biologia..Falar do Canadá hoje é falar do primeiro-ministro Justin Trudeau. Ter um homem jovem no poder mudou a imagem do país? Fui jornalista quando o pai de Justin Trudeau, Pierre, estava no poder. Ele era uma pessoa notável. O filho traz muitas memórias, mas também é uma vantagem ter um líder mais jovem. Os jovens deviam assumir as suas responsabilidades. Fico feliz com a imagem que Trudeau passa para o mundo. Dá-nos a sensação de fazer parte de algo enérgico, que olha para a frente. Fico feliz pelo nosso país. Mas todos os jovens deviam perceber que podem chegar ao poder. Isso é bom. Eu gosto da juventude. Defendo que devíamos baixar a idade de voto para os 16 anos. Quando era governadora-geral visitei tantas escolas e falei com tantas pessoas que estavam envolvidas, por exemplo, nas campanhas pelo ambiente. As mais vigorosas e empenhadas são pessoas que têm 16, 17 anos. Começam clubes, vão a manifestações. Quando chegam à universidade começam a pensar noutras coisas. É quando são jovens e ainda têm o apoio emocional dos pais que têm tempo para pensar. Porque é que o mundo está assim, porque há um mar de plásticos no Pacífico? E questionam-se porque lhes dão um saco de plástico para meter uma única coisa que compram. Os jovens sentem isto de uma forma profunda. Talvez por ainda não terem de viver com as restantes preocupações da vida..Na Austrália, por exemplo, a monarquia é por vezes questionada, no Canadá é um assunto consensual? Por ser absolutamente institucional e não ter nada que ver com o dia-a-dia, sim, é bastante consensual. É o governador-geral quem assina todas as leis. A rainha de Inglaterra não tem uma palavra a dizer em relação à política canadiana. É algo que está muito bem estabelecido e que funciona bem. O governador-geral é que faz tudo e esse tem de ser canadiano. Desde 1952. É cerimonial. É tão longe. A rainha é uma celebridade mítica. As pessoas estão felizes assim. Não tem qualquer consequência nas vidas delas..Foi jornalista durante muitos anos. Como vê esta era das fake news e dos tweets de Donald Trump? Os tweets de Trump estão de acordo com um homem com uma inteligência limitada. Ele não entende aquilo em que está envolvido. E vivemos tão perto disso tudo no Canadá! Temos uma fronteira permeável, recebemos todos os canais de televisão americanos. As fake news são algo que ele usa e, como qualquer populista, Trump empurrou as pessoas para campos onde não têm de pensar. Coisas como uma discussão saudável, o debate de ideias de forma civilizada, desapareceram. O que é muito infeliz. Nunca imaginei que chegássemos à era do governo por tweet. É espantoso! É muito difícil de aceitar quando há pessoas inteligentes e racionais a tentar construir os seus países, construir economias e relações comerciais. Lidar com questões difíceis como a das migrações. Há 68 milhões de pessoas deslocadas. Nunca aconteceu antes. E fico apavorada com a ideia de não termos uma liderança capaz de lidar com isso. No Canadá estamos a fazer o nosso melhor..Como explica essas diferenças tão grandes entre Canadá e EUA? São sistemas democráticos diferentes. No Canadá estamos muito bem servidos pela herança do sistema parlamentar britânico. E somos completamente diferentes porque o Canadá é o país dos pobres e dos excluídos. Ninguém atravessa um oceano para vir para um país com este clima se não tiver sido expulso de um lado qualquer. Os EUA foram fundados por cavalheiros britânicos que tinham dinheiro, compraram vastos terrenos e construíram uma economia baseada na escravatura. Compraram e venderam outros seres humanos para construir a sua riqueza. O Canadá não passava, como disse Voltaire, de "uns hectares de neve". Foi descoberto pelos franceses e explorado devido à sua riqueza em castores. Para penetrar no continente, os franceses tiveram de recorrer às canoas dos nativos e fazer amizade com estes, para poderem trazer as peles. Começámos com os franceses, depois os britânicos e logo a partir de 1759 começámos a lidar com católicos franceses e britânicos não católicos e começámos a desenvolver uma sociedade em que eles se davam. Na Europa ainda se andavam a matar. No Canadá em 1840 tivemos um primeiro-ministro francês católico, quando no Reino Unido os católicos nem sequer podiam votar! Começámos a receber pessoas de todos os sítios, tal como os EUA, mas não lhes pedimos para se misturarem completamente. Não havia nada para eles se misturarem. Não somos esse tipo de país. Tornámo-nos um país muito diferente dos EUA e estou muito feliz por isso!