O escritor francês Philippe Besson já publicou 19 romances, mas a sua vida mudou com o 18.º: Deixa-te de Mentiras. Uma história autobiográfica que aumentou de forma excecional o número dos seus leitores ao criar uma empatia com a revelação que fez de um antigo amor de juventude. O tema não foge ao de vários dos anteriores livros, em que o cenário é em muito o da homossexualidade, só que desta vez não precisou de inventar, apenas recordar..Deixa-te de Mentiras surge do encontro impossível entre o autor e a sua primeira grande paixão, Thomas Andrieu, enquanto era estudante numa localidade do interior francês. Três décadas depois, enquanto dá uma entrevista, vê um homem em tudo igual ao seu antigo amante e descobre que é o filho dele. Alguns anos depois, o filho informa-o que Thomas morreu. Menos de 30 minutos depois, Philippe Besson começa a escrever este romance que tem sido traduzido em muitos países com sucesso: "Estranhei imenso que em países como a Rússia e a Polónia, onde a reação à homossexualidade é complicada, o romance tivesse sido traduzido. Em França ultrapassou o número de 200 mil exemplares e a receção na Inglaterra e na Itália foi também surpreendente para um livro que é eminentemente francófono.".O título vem de um aviso que a mãe de Besson lhe fazia: "Deixa-te de mentiras!" Mas, explica, também serve para "os homens que não assumem a homossexualidade e para Thomas, que esteve sempre envolvido nessa mentira a vida toda"..Além de ser um relato muito autobiográfico, Philippe Besson não deixou de fazer uso dos habituais truques literários e de introduzir um alto grau de suspense: "É verdade, mas eu sou escritor e sei como se faz para segurar os leitores. É importante quando se conta uma história - era o que eu queria - captar a atenção. Quero que o leitor esteja comigo, daí que tenha utilizado o suspense, o escrever na primeira pessoa para criar uma proximidade imediata e situar no presente também de modo que, apesar de tudo ter acontecido há décadas, ser atual. Quero que os leitores estejam dentro da história e, claro, a minha ambição foi fazer literatura.".Já se disse que Deixa-te de Mentiras é o ponto zero da sua obra onde estão todos os elementos entretanto desenvolvidos. É assim? É verdade, sim. O curioso é que quando comecei a escrever há 20 anos o meu desejo era escrever romances de ficção. Era aquilo que eu queria porque gosto de inventar histórias e personagens e jamais pensei em dar início a uma narrativa autobiográfica. Nunca! Queria viver outras vidas que não a minha e isso deixava-me feliz. No entanto, quando reencontrei em 2016 o filho do meu amigo, que vinha anunciar a morte do pai, Thomas Andrieu, nesse momento percebi que tinha de escrever um livro sobre ele..Era-lhe impossível fugir a esse tema? Principalmente, fiquei consciente de que o deveria fazer. Aliás, mal acabei de conversar com o filho já estava a avançar. Posso dizer que ainda não tinham passado trinta minutos do fim da nossa conversa e estava a escrever este livro. Fui-me dando conta de que enquanto o escrevia estava envolvido no relato de um primeiro amor e também numa homenagem a quem desaparecera e, portanto, encontrava-me no ponto zero de tudo o que tinha escrito até aí. Só a partir deste romance é que se pode compreender tudo o que fiz anteriormente. Podia compreender-se o que se passava na minha cabeça em livros do início da minha carreira, como em Um Rapaz em Itália ou em A Ausência dos Homens. Esses e todos os meus livros são povoados por um fantasma, que é este Thomas, e neste momento o leitor pode compreender o que me guiou e de onde veio a inspiração em todos os meus livros. Ou seja, vinha desta primeira história de amor, que teve um grande impacto em mim devido a uma rutura terrível e que nunca deixou de me perseguir durante anos. É esta história de amor que explica o homem e o escritor em que me tornei..A sua musa, Thomas, gostaria de ver este livro publicado? É muito difícil responder a essa pergunta. Não podemos falar por quem morreu e saber qual seria o seu desejo... no entanto, o seu filho desejava que eu o fizesse. Creio que ele pensa como eu e que se não falarmos de Thomas ele será duplamente esquecido. Ele é alguém que se escondeu toda a vida, que se censurou, mutilou e que acabou por se suicidar. Se eu não contasse essa história, era uma vida desperdiçada e que seria esquecida. Por essa razão, estou convencido de que é uma vida que merece ser conhecida e senti isso como um dever e uma obrigação..Mas qual seria a reação de Thomas? Creio que teria ficado muito zangado porque era uma pessoa que guardava esse segredo com todo o cuidado e era muito pudico. Se ele estivesse vivo, decerto que não teria escrito este livro. Contudo, a partir da sua morte era-me insuportável que eu deixasse esquecer uma vida como a dele..É caso para dizer que ter reencontrado o filho alterou a sua própria vida de escritor? Completamente. O primeiro encontro dá-se em 2007, quando nos encontrámos por acaso em Bordéus e fiquei espantado por ser a cópia do pai - foi uma parecença desestabilizadora para mim. Nove anos depois, voltámos a ver-nos para me dizer que o pai tinha morrido. Aí, compreendi que era uma mudança total na minha vida e senti-me perante um compromisso..Então, o seu último livro, Un Certain Paul Darrigrand, só foi possível por causa deste? É também autobiográfico e não o teria escrito sem este Deixa-te de Mentiras. Afinal, é a história que relato nele que me fez escritor. Agora sei que sou capaz de escrever coisas íntimas com uma ambição mais universal..O livro saiu como pensara? Enquanto escrevia o livro a minha intenção não era fazer uma narrativa autobiográfica, antes um romance em que os leitores pudessem reconhecer-se em algo deles. Não era só a minha história, nem a de Thomas, mas a de toda a gente que num momento esteve presa a um silêncio, a uma clandestinidade e a uma invisibilidade, e que se calaram porque não queriam revelar-se. O primeiro amor aos 17 ou 18 ou 19 anos apanha-nos naquela idade do possível, em que se acha que está tudo em jogo na vida e que nada seria diferente em função do que me acontecera. Marguerite Duras disse isso em O Amante: "Muito cedo na minha vida foi muito tarde. A jovem que eu era aos 18 anos ficou para sempre." Também penso assim, o que acontece nesse momento decide o que vai acontecer-nos..Sente-se prisioneiro desta história a propósito dos seus futuros livros? Sim, mesmo que me possa ter libertado da prisão ao tê-lo escrito. Era uma prisão tão terrível como magnífica. Terrível, porque foram muitos anos desgostoso com aquela rutura e uma história que não aconteceu. Tinha passado ao lado do que é essencial e marcou toda a minha vida. Magnífica, porque tinha sido feliz durante algum tempo e guardei essa lembrança durante anos..Este livro deu-lhe muitos novos leitores. É verdade, porque este livro tem tido um percurso inesperado. É um sucesso muito grande em França, foi traduzido em 20 países e vai ser um filme. Trouxe-me leitores que jamais me tinham lido, mas fui o primeiro a ser surpreendido porque era uma história muito íntima, de dois rapazes e passada em 1984 numa localidade do interior da França. Achei que ninguém se interessaria por isto! No entanto, este livro ultrapassou-se a si mesmo devido ao boca a boca entre leitores. Recebi mais de mil cartas de leitores que precisavam de me dizer o que pensavam e que diziam tê-lo aconselhado a mais dez amigos! Ou seja, o romance fugiu das minhas mãos..Este livro é tanto um guia sentimental para quem está apaixonado por alguém do mesmo sexo como uma oportunidade para algum voyeurismo? Guia sentimental é sem dúvida, porque imagino que haja um fenómeno de identificação e de apropriação desta história por empatia. Voyeurismo também poderá existir. Mas em cada um dos casos não era essa a minha intenção e os leitores muito rapidamente esquecem que a história é de outra pessoa e pensam que é a deles e esquecem os dois rapazes para se identificarem com a história. Aliás, uma outra surpresa que tive foi a quantidade de correspondência que recebi por causa deste livro, que tem a particularidade de 80% ser de leitoras heterossexuais. Elas entraram no livro e reveem-se nesta história..E as leitoras homossexuais? Elas também são vítimas de amores não assumidos. No caso dos homossexuais, há duas situações: os da minha geração, com 53 anos, que dizem ter sofrido nesses tempos por ser preciso esconder tudo o que sentiam. Era preciso mentir, fugir à rejeição e à violência sobre os nossos desejos. Hoje, os jovens com 18 anos têm menos dificuldade em lidar com a homossexualidade, embora ainda muitos tenham dificuldade em assumir..Porque é a dor do amor um tema tão eterno? Porque toda a gente a conheceu e todos nos apaixonámos e perdemos a pessoa que amámos. Todos fomos abandonados de uma forma que considerámos injusta e a todos doeu a ausência durante anos... O melhor é aceitar que sofremos, que a vida continuou e acabou bem. Mas isso nem todos conseguem por acharem que seriam mais felizes se tivéssemos ficado com uma certa pessoa, situação que faz que se imagine uma vida que não iríamos viver. Vi isso nessas muitas cartas que me enviaram, de mulheres a dizerem que o homem da sua vida não é o seu marido - "o meu grande amor era outro" - e são, principalmente, as mulheres que me dizem isto, mais do que os homens..Escreveu toda a verdade, romanceou um pouco ou ainda ficou muito por contar? Disse o que era verdade neste livro, quanto mais não seja porque tinha uma obrigação para com o leitor. Já escrevi livros suficientes e inventei de tudo, aqui escrevo a verdade pela primeira vez. Tive de fazer apelo à minha memória, que é de há 35 anos, por isso a pergunta é se as memórias são exatas. Acho que a memória não me traiu..Deixa-te de Mentiras Philippe Besson Sextante 158 páginas.