A imensa cobardia

Passamos uma semana a ouvir comentadores, os do costume do SMMP e os seus sócios jornalistas, de veias do pescoço a estalar e a gritar que vinha aí a ditadura e que estava dado o salvo-conduto para os bandidos assaltarem o que quiserem. Tudo isto porque um parecer repetiu o que a Constituição decreta.
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De vez em quando aparece o discurso da necessidade de uma nova Constituição. Que a que temos já não se adequa aos novos tempos e que tem resquícios ideológicos. Nesta semana, porém, ficou patente a necessidade de haver uma alteração urgente à nossa Constituição. Tem de haver uma conformação institucional à realidade: consagrar o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) e os jornalistas amigos como um dos poderes ao lado dos outros três. A questão do equilíbrio será, no entanto, um assunto delicado. É que a realidade atual diz-nos que o poder destes põe de joelhos o legislativo, o executivo e o judicial, deixa os partidos reféns e até põe o Presidente da República em sentido.

Se não ficar em letra de forma a sua supremacia algo de muito suspeito estará a acontecer. É que toda a gente sabe que o SMMP e a rapaziada do Correio da Manhã (CM) são os intrépidos lutadores contra os corruptos, os campeões da defesa dos direitos fundamentais (desde que não se incluam nestes o princípio da presunção da inocência, da não inversão do ónus da prova, da proteção da privacidade e outros direitos absolutamente menores que só servem para que os bandidos fujam à justiça). Mas não há que temer. Os corruptos que não querem que o SMMP e o CM mandem no país não passarão.
Organiza-se uma campanha como a desta semana.

O parecer do Conselho Consultivo, que a procuradora-geral da República (PGR) Lucília Gago passou a diretiva, não tem rigorosamente novidade nenhuma, é apenas uma repetição do que a Constituição prevê. É verdade: o Ministério Público (MP) é uma estrutura hierarquizada que tem no topo, já agora, alguém designado conjuntamente pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro.

Não, os magistrados não respondem ao SMMP e ao CM. Sim, e como já decorreria até da lei geral, os magistrados têm o direito de recusar "o cumprimento de ordens ilegais, emanadas de superior hierárquico e... do cumprimento de ordens, do mesmo também emanadas, fundada em violação da consciência jurídica do subordinado". Mas em que sistema hierarquizado não há ordens e instruções? O objetivo é ter centenas de ministérios públicos, cada um a funcionar como melhor lhe aprouver? Pois, se calhar é esse mesmo o objetivo, mas não é como lhe aprouver, seria como o SMMP melhor julgasse.

Num país em que se está sempre a pugnar, e bem, pela responsabilização, há quem prefira que a PGR seja esvaziada de poderes. Se queremos pedir contas ao MP temos de sindicar a sua ação e não podemos fazê-lo se não soubermos a quem pedir contas. Qual seria o critério para avaliar a sua ação?

Aliás, não se consegue compreender como os que tanto elogiaram Joana Marques Vidal pela sua ação agora criticam que fique claro que a atual procuradora e a estrutura hierárquica devem dar ordens. Das duas uma: ou mandava ou não mandava. Se mandava devia ser criticada porque não respeitava a imaginária autonomia dos procuradores; se não mandava, não merece os elogios que lhe fazem.

E Pinto Monteiro? Afinal quem o acusa de ter andado às ordens dos políticos mentia, não é? Se até esta nova diretiva ele nem podia dar instruções... Em que ficamos?

Ficamos no mais torpe jogo de poder. O SMMP quer conservá-lo. O seu presidente e as cúpulas mandam mais do que a PGR e assim querem que continue; os sócios do CM querem fazer o que têm feito: ter a possibilidade de condenar pessoas na opinião pública - é o seu poder. E, claro, ter um PGR que faça o que estes senhores querem. Uma coisa sabemos, Lucília Gago não lhes agrada. Ou melhor, agradava enquanto fazia o que eles achavam certo, agora passou a estar ao lado dos políticos e dos poderosos. Todos corruptos, claro.

A narrativa é insuportável. Passamos uma semana a ouvir comentadores, os do costume do SMMP e os seus sócios jornalistas, de veias do pescoço a estalar e a gritar que vinha aí a ditadura e que estava dado o salvo-conduto para os bandidos assaltarem o que quiserem. Tudo isto porque um parecer repetiu o que a Constituição decreta.

Ouvi gente a dizer que não mais se investigaria crimes de corrupção por causa do parecer. A razão era simples: como a PGR é designada por políticos e, pelos vistos, agora poderia dar ordens e instruções aos procuradores, ia ser um regabofe. Lucília Gago impediria todas as investigações por ordem de Marcelo Rebelo de Sousa ou de António Costa. O mesmo aconteceria com os primeiros-ministros e os presidentes que se seguiriam. Ou seja, não só eram todos bandidos como esta procuradora e os próximos PGR seriam uns paus-mandados, bem como os procuradores que nada diriam sobre a possível interferência política - sugiro o estudo do funcionamento do MP nas ditaduras francesa, inglesa ou americana.

Neste país só há um conjunto de gente séria e honesta: o SMMP e jornalistas amigos. Todos os outros, sobretudo os políticos, são uns delinquentes.

De tudo, o que mais choca é a imensa cobardia de todo um país. Dos políticos agachados ao poder fático de uma investigação que apareça numa primeira página de um tabloide; de jornalistas e comentadores a assobiar para o lado enquanto veem colegas a dizer as mais redondas mentiras ou a propagandear a mais absurda ignorância.

Entreguem formalmente e de uma vez por todas o poder de investigar, julgar e condenar ao SMMP e ao CM. No fundo é o que tanta gente está a fazer, consciente ou inconscientemente.

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