Salada de vinagrete, laço de crepe recheado com salmão e carne de mosteiro, e a acompanhar sbiten, uma bebida com mel e frutos silvestres que se serve morna. Apesar da familiaridade com alguns ingredientes nas linhas anteriores certamente que o leitor não os liga à cozinha típica portuguesa. E bem. São pratos russos da região de Costroma, cidade que é centro administrativo do Oblast [subdivisão administrativa do território russo com o mesmo nome] e que tem uma gastronomia muito influenciada pelo frio da região e pelos rios Volga e Costroma - a 340 quilómetros a norte de Moscovo. Foi nessa cidade, a 4400 quilómetros de Lisboa, que nasceu Alexey Kischev, atualmente chef e responsável pelo restaurante Famous Kaffe em Almada. Alexey, de 44 anos, está há 20 anos em Portugal e o seu português é quase imaculado a não ser pela sonoridade com que ainda lhe saem algumas palavras. Aliás, foi o idioma que o afastou durante seis de anos da cozinha quando começou a trabalhar em Portugal.. O chef, formado em gestão hoteleira no país natal, quando imigrou com a mulher, há duas décadas, não falava português. Mal aprendeu voltou aos tachos e fogões. A história, conta, era para ser bem diferente: "Na altura quando vim, a Rússia estava a passar por uma fase muito complica e por isso decidi ir para fora, mas não era para ficar em Portugal. Acabei por me apaixonar pela maneira de ser dos portugueses, pelo clima, pelos hábitos e, claro, pela gastronomia". Lembra ainda que, quando voltou às cozinhas, para continuar a pôr em prática o que estudou na Rússia, percebeu que, para além de algumas técnicas, tudo o resto de pouco lhe valeu, "da gastronomia portuguesa percebia zero". Contudo, arregaçou as mangas e voltou a estudar e aprender a cozinha de Portugal. Por cá, e com a experiência de hotelaria que trouxe do país de origem, trabalhou quase sempre em hotéis..Hotel Miragem, em Cascais, no Sana Epic, hotel Quinta da Marinha e o Almada Business Hotel fazem parte da sua folha curricular. Curiosidade, ou não, nunca trabalhou em restaurantes russos, até que decidiu montar o seu, há três anos.."Há três anos encontrei, juntamente com a minha sócia, este espaço em Almada que está dividido em dois: uma parte de snack bar e um restaurante, onde estou". Conta que o início foi muito difícil, mas que poucos meses após a abertura tinha dias completamente cheios. "Em dezembro do ano passado não tínhamos lugares disponíveis aos fim de semana". E depois veio a pandemia. Mas antes de contarmos o que está Alexey a fazer para contornar tudo o que de mal lhe trouxe a covid-19, quase sem respirar avança a falar do que serve nas suas, agora espaçadas, mesas. O restaurante não é o típico russo que a maioria dos portugueses tem no imaginário, com muitos pratos de strogonoff, bifes tártaros e vodka a rodos. "Aqui servimos cozinha portuguesa, somos um restaurante normal mas tenho sempre pratos russos que posso servir". Aliás, explica que é um local onde muitos portugueses, influenciados por amigos russos vão descobrir a comida da sua região russa, aliás é essa uma das suas apostas. "Agora, mesmo em tempos de pandemia gostava de criar um dia específico para jantar com comida do meu país, para mais russos trazerem os seus amigos portugueses para comerem e conhecerem os nossos pratos e a nossa gastronomia".. A covid-19 veio atrapalhar os seus planos, como a tantos outros no setor dos restaurantes e hotelaria. Confessa que está a ser muito difícil, mas tenta sempre pensar positivo. "Estamos em comunicação com as autoridades por causa da segurança, mas temos de pensar positivo", repete como se fosse um mantra. Apesar da esperança e frieza perante o vírus, nota-se no falar de Alexey a pressa, mais do que a incerteza, que que esta fase passe o mais depressa possível. Não deixa de lamentar que mesmo antes do primeiro confinamento investiu em cerâmica e talheres típicos russos para os dar a conhecer no seu restaurante. E até encomendou uma jaleca especial ornamentada com motivos tradicionais russos, com que posa orgulhoso para as fotografias tiradas para o Diário de Notícias..E se Portugal e Rússia estão precisamente nos extremos geográfico da Europa, também a nível de sabores as diferenças entre as duas cozinhas são muitas.. Para Alexey o mais estranho foi mesmo a confeção da comida que diz ser "ao contrário". "No início estranhei muito. Em Portugal faz-se primeiro o refogado e depois juntam-se os ingredientes, enquanto na Rússia confeciona-se os alimentos primeiros e depois é no final é que junta o refogado".. Conta ainda que vem de uma região que além do muito frio não tem mar perto apenas rio e isso influência a cozinha. "Não tinha conhecimento de como preparar mariscos e peixes de mar. Só então fiquei a perceber que o camarão se faz em três minutos e não em 15", conta a sorrir para acrescentar de seguida: "E da comida portuguesa o que gosto mais é o bacalhau e as migas alentejanas.". Mas afinal o que é a cozinha russa? Alexey suspira e diz: "O país é muito, muito grande, e como temos várias religiões no país, quem manda na cozinha é mesmo a religião. E por isso há vários tipos de comida russa." "Sou cristão ortodoxo e é a igreja ortodoxa que nos diz o que podemos comer ou não. Para além disso temos partes do país que é budista ou ainda a parte muçulmana muito grande, sobretudo na parte do Cáucaso, junto à Geórgia e Azerbeijão com a influência do Mar Negro, onde a comida é muito à base borrego e de queijos.. "Aqui temos no restaurante a comida é da região do Slavos, da parte mais fria do país que vai de Moscovo para norte até São Petersburgo".. E foi com base na comida da região onde nasceu que Alexey apresentou aos repórteres do DN três pratos, que fazem parte do ementa russa do Famous Kaffe.. A começar uma salada, entrada fria, salada de vinagrete. "Como aqui em Portugal vinagrete é um molho, renomeei o prato de salada russa com beterraba, porque os portugueses sabem o que é uma salada russa. Esta diferencia-se pela cor, vermelha da beterraba e pelo sabor avinagrado dos pickles e do óleo de girassol. "Não usamos azeite na nossa cozinha. Só óleos ou manteiga". De seguida mais uma entrada. Desta vez quente. "É um prato de salmão que é típico da zona do Mar Branco, perto da Finlândia. É um crepe de salmão braseado recheado de cogumelos do bosque, com sabor mais forte, e com molho branco feito com natas ácidas - que usamos muito na cozinha russa - e fécula de batata, abóbora e nabo, que é diferente do português, é mais intenso, e a rama do aipo.. Como prato principal, carne de mosteiro. "É um prato de carne de porco versátil. Porque na época em que a igreja ortodoxa não permite que se coma carne, o mesmo prato é servido só com legumes, sobretudo cogumelos que têm um papel muito importante na nossa cozinha". O prato, servido num pote de barro é confecionado com legumes e natas ácidas e vai ao forno. E para beber? Vodka? Pergunta o jornalista. Um não afirmativo saí da boca do chef. "O vodka é uma coisa recente na cozinha russa, nós aqui servimos uma bebida que é tradicional e antiga: sbiten".. Feita à base de mel e frutos silvestres que o gosto português não estranha assim tanto, apesar de ser servida morna. A terminar viagem gastronómica à Rússia eslava, Alexey mostra-se confiante no futuro, à espera que a pandemia passe, concentra-se no dia-a-dia em receber os clientes e a prepara a sua comida em take away. Confessa, mal pode esperar para voltar a ter a casa cheia e a servir com gosto os pratos da sua terra.