Pega ladrão! Roubaram a minha história!

Alguns brasileiros já foram tungados por grandes artistas internacionais - suas ideias originais foram parar nas obras deles.
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Vi o trailer de Rebecca, um remake pela Netflix do clássico filme de 1940, de Alfred Hitchcock. Gostei, porque me poupou tempo - poderei investir suas duas horas e um minuto de duração em outra coisa mais útil. Conhecendo bem o original com Joan Fontaine, Laurence Olivier e Judith Anderson, em asfixiantes preto e branco e tela quadrada, posso dispensar o forrobodó de cores, efeitos especiais, espasmos e sexo adolescente entre os atores azulejados da nova versão.

E há, claro, a chamada triunfal do trailer: "Baseado no livro atemporal de Daphne du Maurier." Refere-se ao romance de 1938 da inglesa Daphne, 30 anos na época e já famosa como autora de romances em que as raparigas arfavam com sofreguidão e seus decotes inflavam-se como foles à visão dos aristocráticos mancebos. Em Rebecca, ao contrário, a heroína é uma mulher que nunca se vê, porque morreu antes de começar a história, e a personagem mais marcante é a diabólica governanta que nitidamente alimentava uma paixão lésbica pela patroa. Parecia uma nova escritora... Talvez por isso, o livro tenha ganho um importante prémio literário, vendido de saída milhões de exemplares, sido traduzido em várias línguas e logo levado ao cinema pelo produtor americano David O. Selznick, que importou Hitchcock expressamente de Londres para dirigi-lo.

Pois imagine o choque de uma escritora brasileira chamada Carolina Nabuco ao assistir ao filme num cinema do Rio. Era, quase sem tirar nem pôr, o seu romance A Sucessora, de 1934. Daphne du Maurier lhe roubara a história.

Uma inglesa plagiar uma brasileira? Como? Simples. Carolina, nascida em 1890, era filha de Joaquim Nabuco, jornalista, escritor, diplomata, estadista do Segundo Reinado e o mais perto que o Brasil teve de um legítimo aristocrata - até mesmo por não aceitar os títulos nobiliárquicos que seu amigo, o imperador D. Pedro II, lhe oferecia.

Nascida em tal berço, Carolina tinha muitos contactos nos Estados Unidos e na Europa. Com o sucesso de seu livro no Brasil, verteu-o ela própria para o inglês e enviou o manuscrito para um agente literário baseado em Nova Iorque. Este o submeteu a diversas editoras americanas e inglesas. Nenhuma respondeu. Quatro anos depois, lançado o filme, Carolina viu sua história no ecrã. E, quase em seguida, recebeu uma carta em que Selznick lhe oferecia boa quantia para assinar um documento segundo o qual "as semelhanças com seu livro eram coincidência". Carolina recusou. E todos acordaram para o plágio.

O crítico Álvaro Lins (futuro embaixador brasileiro em Lisboa que, em 1960, abrigaria o general Humberto Delgado) comparou os dois livros e encontrou neles 73 "coincidências" envolvendo a trama, os diálogos e até personagens secundárias. Em ambos, uma jovem sensível, mas insegura, desfaz um noivado de anos com um pretendente para se casar com um viúvo rico e arrogante, cuja primeira mulher, já morta (Alice, no livro de Carolina; Rebecca, no de Daphne), parece omnipresente na casa, esmagando-a. Nos dois livros, há um serviçal - em Carolina, é um copeiro; em Daphne, a dita governanta - que massacra a sucessora com referências à superioridade daquela mulher, gabando-lhe a beleza, a elegância e a inteligência. Dir-se-ia que o próprio marido é um escravo dessa obsessão, que se observa nos lençóis ainda marcados pelas iniciais monogramadas e até pelo perfume da tal mulher.

Tudo isso e muito mais se lê tanto em A Sucessora quanto em Rebecca. O que aconteceu é que, entre as editoras consultadas pelo agente, estava a que publicava os livros de Daphne de Maurier. O manuscrito caiu-lhe aos olhos e ela, gostando do enredo, resolveu ampliá-lo. É verdade que mudou o final da história (para pior), mas foi displicente na camuflagem.

Para Álvaro Lins, se fosse o contrário - uma brasileira copiando uma inglesa -, todo mundo acharia normal. Nosso complexo de vira-lata, como diria Nelson Rodrigues, determinaria isso. Mas, tempos depois, um artigo no The New York Times e uma tese na Universidade da Pensilvânia dariam ganho de causa a A Sucessora. Mesmo assim, Carolina jamais quis levar o caso adiante. Era uma mulher fina e discreta de mais para meter um processo na escritora inglesa - além disso, não precisava do dinheiro. E, assim, Rebecca, aliás, Alice, pôde continuar a descansar no fundo do mar.

Gatunagens como esta já haviam acontecido antes tendo brasileiros como vítimas. Em 1929, o jornalista, poeta e dramaturgo Álvaro Moreyra viu a plateia carioca vibrar com a peça Topaze, do francês Marcel Pagnol. Pois era não só a mesma trama como a mesma e pioneira técnica antinarrativa de sua peça Adão, Eva e Outros Membros da Família, levada à cena por ele em 1928. Coincidência? Não. O texto de Adão, Eva e Outros Membros da Família saíra originalmente na popularíssima revista Para Todos..., em 1925, num Rio cheio de franceses que liam em português. Por que o texto não chegaria a Pagnol em Paris?

Os mesmos franceses podem ter levado ao compositor Louis Guglielmi a melodia da canção Amar a Uma Só Mulher, do lendário sambista Sinhô, sucesso de Francisco Alves em 1928, e dali resultou a fabulosa La Vie en Rose, que imortalizou Edith Piaf em 1947 - compare as melodias. Outros casos: em 1979, em seu megassucesso Da Ya Think I'm Sexy, Rod Stewart tungou "acidentalmente" o teteretê de Jorge Ben em Taj Mahal, de 1972. Em 2002, o querido escritor gaúcho Moacyr Scliar viu seu romance Max e os Felinos "adaptado" pelo canadense Yann Martell no romance A Vida de Pi, também ganhador de quilos de prémios. E por aí vai - ou foi.

Mas ninguém pode atirar a primeira pedra porque, em outros momentos, nós é que fomos buscar inspiração lá fora, não? O século XX era assim - meio promíscuo nessas coisas.

Jornalista e escritor brasileiro

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