Um crime ocorrido em Taipé, em fevereiro do ano passado, desencadeou uma proposta de lei sobre a extradição e em consequência a maior revolta contra a administração de Hong Kong..Hong Kong viveu na quarta-feira o segundo capítulo do mais grave confronto político desde a sua transferência para a China, em 1997, com a polícia a disparar balas de borracha, gás pimenta e gás lacrimogéneo contra manifestantes que bloqueavam as principais artérias. Dezenas de milhares de manifestantes, a maioria constituída por jovens vestidos de preto, com máscaras cirúrgicas e óculos de proteção, voltaram às ruas depois do primeiro protesto de domingo, que terá juntado um milhão de pessoas, para rejeitar um projeto de lei do governo que permite a extradição para a China continental..Dos confrontos, que se estenderam até ao final da noite, há a registar, segundo o South China Morning Post , 72 feridos, num balanço realizado às 22.00 locais..Os confrontos eclodiram perto do Conselho Legislativo (o Parlamento), onde o texto deveria ter sido debatido, mas à medida que a multidão ocupava as principais ruas do coração da cidade, a assembleia de 70 lugares anunciou o adiamento do debate para uma "data posterior". A votação final do texto estava prevista para dia 20..Carrie Lam, a chefe do executivo local, condenou "veementemente" os "motins organizados" responsáveis, na sua ótica, por atearem fogos, entre outros métodos letais. "Ao ignorarem a lei e a ordem, os motins que afetam uma sociedade pacífica são inaceitáveis para qualquer sociedade civilizada", reagiu num discurso transmitido na TV..Lam, que prometeu ainda avançar com a legislação, viu o jornal Global Times, jornal em inglês do grupo do Diário do Povo, o órgão central do Partido Comunista da China, amplificar as descrições dos manifestantes como "separatistas extremistas" armados para "atacar a polícia". Esses manifestantes, segundo o jornal, são instrumentalizados pela "interferência de poderosas forças estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos"..A mãe de Hong Kong.Numa entrevista gravada na quarta-feira reconheceu que a questão é "indiscutivelmente controversa", mas voltou a defender a introdução do projeto de lei, e disse que era o momento certo para que fosse debatido, embora tenha reconhecido que "talvez seja impossível eliminar completamente a preocupação, ansiedade ou controvérsia" do tema..Questionada sobre se, perante os protestos, repensou sobre a natureza da lei, Carrie Lam comparou as suas funções com as de uma mãe. "Se os jovens decidem agir e não lhes damos o que eles querem, e depois? Para usar uma metáfora, sou mãe, tenho dois filhos. Se eu deixar os meus filhos levarem a melhor de cada vez que se comportam desta forma, acredito que teremos uma boa relação no imediato. Mas se eu permitir o seu comportamento desobediente, eles talvez se arrependam no futuro.".Lam ensaiaria ainda um momento de emoção após lhe terem perguntado se vendeu Hong Kong. "Como podem? O meu amor por este lugar levou-me a fazer tantos sacrifícios pessoais", disse..Regresso a 2014.O descontentamento nas ruas fez eco do movimento dos guarda-chuvas, um grupo defensor dos valores democráticos que iniciou as atividades no outono de 2014, quando manifestantes paralisaram distritos inteiros da megalópole por dois meses e lutaram contra a polícia. O movimento exigia a escolha do cargo ocupado por Carrie Lam, chefe do executivo, através de sufrágio universal e não por uma comissão pró-Pequim. Também o Conselho Legislativo tem metade dos deputados eleitos de forma indireta, de forma a assegurar uma maioria favorável aos interesses da China. O movimento dos guarda-chuvas - usados pelos manifestantes para se protegerem do gás lacrimogéneo - acabou com a prisão dos seus líderes e a recente condenação de nove líderes..O fracasso dos protestos de 2014 em obter concessões de Pequim poderia ter sido desmotivador. Mas desta vez o tema tem o condão de poder juntar ainda mais pessoas entre a população de mais de sete milhões. É que a lei da extradição levanta dúvidas até sobre a continuidade de Hong Kong como centro financeiro asiático nos moldes de hoje, porque pode minar de forma irreversível a confiança dos investidores. A câmara do comércio americana no território e alguns dos principais empresários de Hong Kong avisaram que a lei iria danificar a reputação do território de local seguro para os negócios internacionais..A prova de que a todos afeta a lei foi ter juntado na greve de dia 12 o sindicato dos professores, estudantes, mas também os grandes bancos não controlados por Pequim, como o HSBC (embora, oficialmente, os funcionários tenham recebido tolerância de ponto devido aos previstos constrangimentos no trânsito)..E, afinal, que lei é esta?."O maior medo que tenho é que Hong Kong se torne uma cidade chinesa como as outras. Se a lei passar, os chineses podem forçar as suas leis", disse o estudante universitário Alan Patrick à Lusa. A transferência de Hong Kong, em 1997, e Macau, em 1999, para a República Popular da China decorreu sob o princípio um país, dois sistemas, princípio que os manifestantes dizem estar em causa. Para as duas regiões administrativas especiais da China foi acordado um período de 50 anos com elevado grau de autonomia, a nível executivo, legislativo e judicial, sendo o governo central chinês responsável pelas relações externas e pela defesa..De acordo com a lei proposta em fevereiro, os residentes de Hong Kong, bem como os cidadãos estrangeiros e chineses que vivem ou viajam pela cidade, estariam todos em risco se fossem procurados por Pequim. A chefe do Executivo e os tribunais de Hong Kong podem processar pedidos de extradição de jurisdições sem acordos prévios, como é o caso da China continental. Em teoria, os tribunais locais analisariam os casos de forma individual e poderiam usar o poder de veto para impedir certas extradições na antiga colónia britânica..Os defensores da lei argumentam que, caso se mantenha a impossibilidade de extraditar suspeitos de crimes para países como a China, tal poderá transformar Hong Kong num "refúgio para criminosos internacionais". Por sua vez, grupos de direitos humanos acusam a China de uso de tortura, detenções arbitrárias, confissões forçadas e dificuldades no acesso a advogados, onde os tribunais são controlados pelo Partido Comunista..Homicídio de grávida sem justiça.Hong Kong tem acordo de extradição com 20 países, o que não acontece com a China, Macau e Taiwan. Foi precisamente na ilha Formosa que um caso de homicídio levou à mudança de política. As autoridades de Taipé não podem levar à justiça um cidadão de Hong Kong suspeito de ter assassinado a namorada grávida em Taipé antes de ter fugido para a terra natal. No mesmo dia em que a proposta foi apresentada, deputados da oposição advertiram que a lei poderia ser um instrumento para Pequim usar, em especial em relação aos dissidentes políticos..A presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, mostrou-se solidária com os manifestantes. "Extremamente triste ao ver as imagens da polícia de Hong Kong a disparar balas de borracha contra manifestantes. Para o povo de Hong Kong: vocês podem sentir que as reivindicações por liberdade parecem cair em saco roto, mas saibam que todos os amigos de Taiwan e mundo fora estão ao vosso lado.".De Taiwan chegou ainda uma mensagem do empresário Terry Guo, o bilionário da Foxconn que quer concorrer à presidência do território. "Se eu me tornar presidente, irei receber o povo de Hong Kong de braços abertos.".Por sua vez, a antiga potência colonial instou o governo de Hong Kong a "parar e refletir" sobre o projeto de lei da extradição. "Exorto o governo de Hong Kong a ouvir as preocupações do seu povo e dos seus amigos na comunidade internacional e a pausar e refletir sobre essas medidas controversas", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt. "É essencial que as autoridades encetem um diálogo construtivo e tomem medidas para preservar os direitos e liberdades de Hong Kong e um elevado grau de autonomia, que estão na base da sua reputação internacional", concluiu..Também a primeira-ministra Theresa May lembrou que as regras de extradição devem respeitar os direitos e liberdades consagrados na Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984. "Estamos preocupados com os potenciais efeitos destas propostas, especialmente tendo em conta o elevado número de cidadãos britânicos que se encontram em Hong Kong", declarou May no Parlamento.