Desbravando corajosamente o denso emaranhado semântico que envolve o "pós-modernismo" (um termo cuja definição começou por variar de disciplina para disciplina, e que acabou a variar de pessoa para pessoa), Umberto Eco reduziu-o a uma "atitude", que descreveu do seguinte modo: "Um homem que ama uma mulher culta sabe que não lhe pode dizer "Amo-te loucamente", pois sabe que ela sabe (e sabe que ela sabe que ele sabe) que a expressão já foi usada em livros de Barbara Cartland. A solução é dizer-lhe "Como diria uma personagem de Barbara Cartland, eu amo-te loucamente". Tendo evitado a falsa inocência, e admitido que essas declarações já não são possíveis, conseguiu todavia dizer o que queria dizer à mulher: que a ama loucamente, num mundo que deixou de ser inocente.".Nesta perspectiva circunscrita, a postura pós-moderna é uma forma de lidar com os dialectos exaustos a que costumamos chamar "lugares-comuns" (sejam verbais ou emocionais), e de aceitar que o passado, não podendo ser destruído, tem obrigatoriamente de ser revisitado - não com inocência, mas sim com ironia. Claro que há outra forma de o fazer: o modo nostálgico. Tal como a intertextualidade irónica, a nostalgia depende da nossa familiaridade com outra coisa qualquer. É esse o modelo do próprio contra-exemplo de Eco: o que rejeita a exaustão, finge que a inocência nunca perdeu o hímen, e povoa as suas paisagens com personagens de Barbara Cartland que se amam loucamente, porque sabem que há um público para as reconhecer e apreciar..É possível que a maior e mais estranha inovação da última década na produção de cultura popular seja uma mistura destas duas atitudes: uma postura que reproduz com fidelidade técnicas e formas nostálgicas, e cuja blindagem de distanciamento irónico consiste paradoxalmente em nunca abrir o jogo. J. J. Abrams deu o tiro de partida com o pastiche spielbergiano chamado Super 8, e a meta foi foi agora triunfantemente cortada por Stranger Things, que vai na terceira temporada consecutiva a dizer aos anos 1980 que os "ama loucamente" sem nunca piscar o olho ao espectador porque todo o cenário já é uma gigantesca pálpebra basculante..A acção decorre numa cidade pequena rodeada por bosques, acompanha um grupo de amigos pré-adolescentes, e começa quando um deles, ao regressar a casa de bicicleta, é raptado por um efeito especial. A série é bastante competente naquilo que faz e quer fazer, e duas das suas maiores virtudes são a despreocupação com que encara a sua quase total falta de originalidade e o empenho em não perder tempo a desenvolver uma "mitologia" complexa que explique as coisas "estranhas" que vão acontecendo. As piadas são boas, os actores são óptimos, a cinematografia é inofensiva, o ritmo é eficaz. Stranger Things é quase sempre bom, embora raramente seja interessante (neste aspecto, é quase o oposto de Game of Thrones, uma série que raramente foi boa, mas quase sempre interessante)..Afirmar tudo isto é menos crítica do que descrição neutra. A série aplica na sua construção narrativa a mesma lógica das brincadeiras infantis: apropriação caótica, em que pouco coalesce e nada importa, nem sequer as consequências. É assim que funcionam os brinquedos: é suposto pegarmos neles, brincarmos, e depois arrumarmos tudo no caixote quando acabamos; não é suposto interrogarmos a sua coerência ou sofisticação nem exigir que se comportem como romances da George Eliot. O que acontece em cada uma das três temporadas é menos uma "história" do que um monte de adereços despejados num recipiente com a forma de uma história. E funciona bem - especialmente na primeira. O efeito, como era inevitável, vai sendo diluído pela repetição e pelas constrições do próprio espírito do projecto (as coisas ficam "menos" e não "mais" estranhas quando acontecem pela segunda ou terceira vez)..É justo exigir mais do que isto a uma série de televisão cujo propósito declarado era reduzir a pura iconografia os objectos de um período cultural específico, usando-os para proporcionar um entretenimento competente que se evapora no momento de chegada? Uma resposta possível (e mais do que legítima) é que será injusto criticar uma ficção por não concretizar ambições que nunca teve. Outra resposta, no entanto, é que a sua fidelidade a entretenimentos passados sugere que reconhece, pelo menos, que uma das funções do entretenimento de qualidade é gerar memórias suficientemente originais, intensas e duradouras para que um dia justifique ser ele próprio objecto de retrospecção nostálgica..Mais preocupante do que isso, se estivermos inclinados a preocupar-nos com coisas destas, é que a série é mais um sinal de afunilamento de recursos - económicos e imaginativos - naquele que é supostamente o modo de produção cultural mais relevante do nosso tempo. Somos lembrados com frequência que o dinheiro e o talento migraram para o pequeno ecrã e para os serviços de streaming, mas os espaços criativos que ocupam parecem cada vez mais exíguos, recombinando o mesmo catálogo de elementos familiares, e (regra geral) excluindo tudo o que é esquisito, inquietante ou desconfortável: é criação por algoritmo, em que se alguém gosta de "x", é provável que também goste de "y", pelo que não há grandes motivos para experimentar "z"..Antes de perder as suas raízes e passar a significar apenas um sentimentalismo performativo, assente na venda a retalho de memórias sintetizadas e confortáveis, a nostalgia começou a sua longa carreira como condição clínica - baptizada por um médico suíço no século XVII para descrever a ferida provocada pelo desejo de regressar a casa. O escritor inglês Mark Fisher identificou na incessante utilização do "modo nostálgico" pela cultura popular recente uma espécie da patologia temporal: um "cancelamento do futuro" que cristalizou no século XX e do qual ainda não saímos. Pertencer ao século XXI significa aceder às formas culturais herdadas do século XX em equipamentos cada vez melhores, e - crucialmente - a possibilidade de o fazer com muito mais frequência..O impulso nostálgico, tal como se manifesta neste contexto, dependia de uma combinação precisa de calendário, repetição e acessibilidade. Muitos dos filmes dos anos 1980 que alimentam séries como Stranger Things eram eles próprios produtos de recriação nostálgica (no caso, das infâncias idealizadas dos anos 1950); depois eram vistos uma vez no cinema (e, com sorte, uma segunda vez em VHS passado um ano): a memória tinha tempo para absorver, editar, e distorcer. A tecnologia actual acelerou o metabolismo. É praticamente impossível sentir o mesmo grau de nostalgia por algo que está disponível num equipamento portátil e à distância de um clique..Talvez nada disto seja um problema real nem precise de uma solução. Mas o passado recente é um recurso cultural finito: se não for explorado com imaginação, arrisca-se a criar um presente onde poucas "coisas estranhas" vão merecer nostalgia futura..Escreve de acordo com com a antiga ortografia