Florbela vive numa casa de abrigo desde final de 2016 com os seus três filhos rapazes. Há uns meses foi notificada pelo Tribunal de Família e Menores porque o pai do filho mais novo, o companheiro de quem fugiu porque a agredia, a acusou de ter raptado a criança. Perante a juíza e o agressor, que estava a 300 quilómetros de distância e assistia à audiência por videoconferência, teve de dizer que não tinha raptado o filho, que estava escondida numa casa de abrigo porque aquele homem lhe bateu durante anos, a primeira vez ainda nem sabia que estava grávida..O pai exigiu no tribunal que a mãe levasse Pedro - os nomes são fictícios - a visitas quinzenais. Teria de ser ela, desempregada que se viu na contingência de abandonar tudo o que tinha para fugir às agressões, a pagar as viagens para uma cidade que fica a três horas de distância. A juíza entendeu, contudo, que se o pai queria ver o filho deveria ser ele a deslocar-se..Só que a decisãoobrigou a que Florbela tivesse de dizer em que cidade se escondeu. "Obrigou é a palavra exata, eu não queria dizer onde estava, mas fui obrigada. E fui ainda obrigada a dar o meu telemóvel. Passei tanto tempo escondida, arranjei outro número, para o tribunal me obrigar a dizer onde vivo.".Não foi só a cidade onde vive com os três filhos que Florbela teve de revelar. Na segunda audiência, a magistrada estabeleceu então que nessas visitas de fim de semana teria de ser a mãe a entregar a criança ao pai - junto a um centro comercial, onde existem câmaras de videovigilância. Ou seja, que tivesse de dar de caras com o ex-companheiro..O que indigna Florbela não é o filho ver o pai. Sabe que o menino gosta dele e não quer interferir nessa relação. O que não compreende é como é que uma juíza do Tribunal de Família e Menores decide que deve ser ela a levar-lhe a criança, quando tem um processo-crime contra o ex-companheiro por violência doméstica - em breve irão a tribunal.."Não é justo proibir o filho de estar com o pai, mas eu é que não sou obrigada a vê-lo. O pai devia ver o miúdo em alguma instituição, sem que tivesse de me deparar com ele. Mas está escrito na ata do tribunal que tenho de ser eu a levar a criança, sempre ao fim de semana, em vez de ser um dia em que as técnicas pudessem acompanhar.".Florbela conta episódios que já aconteceram quando vai entregar o filho: o ex-companheiro já a agarrou, tentou beijá-la, apalpou-a. Outras vezes dirige-lhe palavras ousadas que a levam a responder-lhe que tenha vergonha. "Já tive de sair dali a correr, porque o conheço e sei o que me ia acontecer." Por todas estas razões, a mulher escolhe um local estratégico, junto à esquadra da polícia, para entregar o filho ao pai..O caso de Florbela ilustra a denúncia da APAV (Associação de Apoio à Vítima) de que os tribunais de família e menores estão a decretar visitas de pais aos filhos escondidos em casas de abrigo, pondo em risco a segurança das vítimas, mães e filhos. Uma situação que decorre sobretudo da falta de coordenação entre os tribunais de família, onde tramitam os processos de regulação de responsabilidades parentais, e os tribunais criminais que julgam o processo de violência doméstica.."Se saímos da nossa casa para irmos para uma casa de abrigo é para nos sentirmos em segurança, não é suposto que o tribunal de família intervenha desta maneira, expondo-nos. Senti e constatei que este tribunal ignora as vítimas de violência doméstica", afirma..Tribunais mistos são a solução?.É por decisões como esta que a presidente do Instituto de Apoio à Criança, Dulce Rocha, acusa que todos os tribunais se arrogam o direito de decidir, mesmo que seja contra o que outros decidiram, e sem que haja uma decisão que prevaleça. A procuradora da República, que trabalhou muitos anos em tribunais de menores, entende, por isso, que a solução passa pela criação de tribunais mistos, pelo menos em Lisboa e Porto. Uma medida, aliás, prevista pelo governo nas medidas anunciadas para combater a violência doméstica. "Os tribunais mistos fazem uma avaliação global. Assim, estes tribunais apreciavam a violência doméstica e também as responsabilidades parentais, os regimes de visitas e de guarda das crianças. Mas, enquanto não houver tribunais mistos, tem de haver uma decisão que prevaleça, tem de haver uma norma que estabeleça qual é a decisão judicial que prevalece, senão corremos o risco de ter decisões contraditórias", explica..Dulce Rocha defende que as decisões penais devem prevalecer sobre a regulação das responsabilidades parentais: "Tem de ser o direito penal a prevalecer, porque é um ramo do direito que defende os bens jurídicos de quem atenta contra eles e defende os direitos fundamentais. Tem de ser o ramo do direito que tem o princípio da suficiência, que lhe permite que sejam analisadas outras questões.".A existência de tribunais mistos poderia evitar que Florbela tivesse sido obrigada a explicar ao tribunal de menores, em frente ao agressor, que estava numa casa de abrigo. Quanto mais dizer em que cidade vive. Mas como não existem, quando for a tribunal pelo processo de violência doméstica, a decisão do tribunal de família não deverá ser tida em conta. Mesmo que sejam estabelecidas medidas restritivas de aproximação do agressor à vítima, não é linear que a decisão de a mãe levar o filho ao pai seja reavaliada - mesmo que as responsabilidades parentais não sejam decisões fixas..Daniel Cotrim, psicólogo da APAV, diz que há situações em que existe esta restrição e ainda assim o tribunal de família decreta as visitas das crianças ao agressor. "Aconselhamos a que estas mulheres respeitem a decisão para que não entrem em incumprimento até ser revista a responsabilidade parental.".Nestes casos, explica, o que as vítimas tentam é que num segundo momento haja outro elemento da família, como os avós ou tios, que levem a criança ao pai. Também se tenta que as visitas aconteçam em instituições onde as vítimas estejam em segurança..Muitas vezes, diz Daniel Cotrim, o interesse do pai não é ver a criança, mas tentar perceber onde a mãe está escondida..O pai de Pedro já lhe disse que sabe onde vivem, só desconhece o número da porta. Além do medo de ser atacada quando vai entregar o filho, Florbela vive com o coração nas mãos, sempre a imaginar que poderá dar de caras com o ex-companheiro à porta de casa: "Segurança só tenho dentro do abrigo. Quando saio da formação, as minhas colegas perguntam-me porque é que estou sempre a olhar para os lados." Florbela quer seguir em frente, refazer a vida, mas sente que tem uma espada sobre a cabeça..Zelinda recusa levar a filha de dois anos e meio à cadeia.O pai da filha de Zelinda Coscurão está detido. A filha já nasceu numa casa de abrigo e ele não a conhece. Inicialmente recusou a paternidade e exigiu um teste de ADN. No tribunal de família, por videoconferência, disse que queria conhecer a menina e ela acedeu. Mas nunca pensou que a decisão fosse aquela que viria a ser decretada: que a sua filha de 2 anos e meio fosse levada pela avó paterna, que nunca viu, à cadeia onde o pai está preso.."A juíza virou-se para mim e disse "o pai quer conhecer a filha". Eu ia dizer que não? Ficava com má imagem para a juíza se dissesse que não. Podia ter respondido "quando saíres logo vês, vês por Skype ou mando-te uma fotografia". Nunca pensei que ele conhecer a minha filha significava levá-la para dentro de uma prisão.".O ex-companheiro, conta, disse também que Zelinda não poderia entrar na cadeia, só a mãe dele. E o tribunal decretou que assim fosse - a avó levaria M. às visitas quinzenais enquanto o pai estivesse detido.."A minha filha tem 2 anos e meio, não posso fazer uma data de quilómetros de comboio e depois entregá-la a uma estranha. Ela não tem idade para perceber o que está a acontecer. Então largava-a lá tranquilamente e a avó ia com a minha filha para a prisão, como se ela não fosse estar a gritar em pânico? E para ver um homem que nunca viu? Que loucura! Como é que pôde decretar uma coisa destas? Só percebi quando li a ata...".A história de Zelinda, de 34 anos, é dolorosa e feita de violência. Os avós que lhe batiam, o tio com problemas mentais que lhe matava os bichos de estimação para a magoar. E depois os homens. Foi vítima de violência doméstica em duas relações, passou de uma para a outra, sempre a ser agredida. Se já não se sentia ninguém quando era espancada pelo homem que conheceu no Exército, onde foi militar durante seis anos e meio, passou a sentir-se "uma merda" quando se juntou com o pai de M. Nessa altura, já lhe tinham retirado a filha mais velha, fruto de um relacionamento na adolescência. O único homem que não lhe bateu foi o único com quem se casou, o pai das duas filhas do meio..O sonho de juntar as quatro filhas.Zelinda tem quatro filhas e nunca teve as quatro juntas. Nunca. Esse é um sonho que acalenta. Ou, pelo menos, espera recuperar a relação com a filha mais velha que vive com a tia e recusa a mãe. Chora quando fala nela. Viveram sozinhas muitos anos, antes de Zelinda se casar. Diz que lhe deu tudo e agora não consegue aproximar-se dela..Depois do fim do casamento, Zelinda teve um namorado que a espancava. "Estava muito deprimida, comecei a ter visões. Estava louca! Estive quatro meses praticamente a dormir, arranjava comprimidos porque não queria estar acordada. A minha filha mais velha tomava conta de mim..." Depois veio o pai de M., consumidor de drogas, que lhe bateu desde o primeiro dia em que viveram juntos..Daniel Cotrim apelida de "bizarra" a decisão do Tribunal de Família e Menores que determina a visita da criança ao pai preso. E, apesar de a APAV aconselhar sempre as vítimas de violência doméstica a cumprirem as sentenças, Zelinda decidiu não fazê-lo. Por sua conta e risco.."Estamos sempre a inventar a roda, isto é brincar com a vida das pessoas, estas decisões fazem com que tenham sequelas para a vida toda", afirma o psicólogo da APAV..Dulce Rocha dá também a sua opinião: "Por vezes os tribunais de família e menores romantizam as relações familiares de tal forma que podem pôr em risco a segurança das vítimas de violência doméstica. Mas é nas relações familiares que surge a grande violência sobre crianças e mulheres.".Quando o hospital denuncia onde a mãe e os filhos estão a morar.Foi pelos filhos que Maria, 45 anos, deixou tudo para trás: a casa, o trabalho e vários episódios em que acalentava a ideia de voltar a ter uma vida sem violência física e psicológica. Um dia, a filha mais velha pediu: "Mãe, vamos embora daqui!" Maria, que já andava com o coração partido, naquele dia sentiu-o estilhaçar-se. E tomou a decisão. Às escondidas foram fazendo as malas - nunca as tiraram do sítio, iam metendo lá a roupa o mais discretamente que conseguiam. Até que, em pouco tempo estavam os três, a mãe e dois filhos menores, a mais de 200 quilómetros numa casa de abrigo para vítimas de violência doméstica..Sentiam-se finalmente em segurança, mas foi por pouco tempo. Ainda não tinham passado dois meses quando a instituição foi informada de que o marido sabia, pelo menos, qual era a zona onde viviam - e foi o hospital distrital a denunciar onde estavam. O filho mais novo de Maria precisou de uma consulta de estomatologia e, apesar de ter ficado escrito que viviam numa casa de abrigo - um local anónimo e sigiloso -, e de terem deixado o respetivo contacto telefónico, o hospital enviou uma carta com data, hora e local da consulta para a morada de família, onde ainda vivia o agressor.."Fiquei assustada, mas ir para outro sítio? Pensei "vou arriscar, vamos ver no que vai dar, ele sabe qual é o hospital, não sabe a morada". No dia da consulta, tive medo de que ele estivesse no hospital ou a rondar e fui acompanhada por uma técnica e o segurança foi avisado", conta Maria. O marido não apareceu..Foi feita uma reclamação junto do hospital, que culpou a mãe por não ter mudado a morada no cartão do cidadão. A informação sobre o facto de estarem escondidos nu ma casa de abrigo e de isso ser fundamental para sua proteção foi ignorada, perdeu-se pelo caminho entre os serviços..E Maria e os dois filhos voltaram a sentir-se inseguros, ameaçados. Mas nunca foram procurados pelo agressor, um homem com distúrbios, que já foi por duas vezes internado compulsivamente..Entretanto, e enquanto decorria o processo de regulação das responsabilidades parentais e o processo de divórcio, o rapaz diz que quer ver o pai, mas não quer estar sozinho com ele - a filha ainda se recusa a vê-lo. O pai já sabia a zona onde poderiam estar a morar e a decisão foi que se encontrassem nas instalações da segurança social numa cidade a cerca de 30 quilómetros daquela onde vivem..Até que, com o passar do tempo, ficou mesmo a saber qual a terra onde se esconderam. E é lá que agora o pai vai visitar a criança, sem saber onde moram. Nas primeiras visitas, Maria andava preocupadíssima, o filho tinha ordens para só sair da rodoviária quando o autocarro do pai partisse. Tinha medo de que ele seguisse o filho até à casa de abrigo.."Temos medo, mas vamos ganhando muita coragem." Foi a essa coragem que Maria e os filhos se agarraram quando decidiram criar raízes na terra onde se refugiaram. Querem seguir em frente e deixaram por estes dias o abrigo, têm agora uma casa só deles. "Às vezes penso "e se ele me aparece à porta?" Mas não quero pensar muito nisso.".Parlamento discute pacote legislativo sobre violência doméstica.Penas de prisão a subir de cinco para um máximo de seis anos, proibição de suspensão da pena se esta for superior a dois anos, obrigatoriedade de os médicos fazerem denúncias às autoridades, impedimento de as vítimas recusarem depor em julgamento, maior proteção das crianças, formação dos magistrados e proibição da suspensão provisória do processo..Estas são algumas das medidas previstas num pacote legislativo para evitar e punir crimes de violência doméstica que vai ser discutido na próxima terça-feira no Parlamento e que deverá descer à especialidade sem votação para se encontrar posições comuns. Todos os partidos entregaram propostas - à exceção do PS, que leva um projeto de lei com vista à reformulação dos crimes de violação, coação sexual e abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz..Um debate que acontece quando já se contabilizam 14 vítimas mortais de violência doméstica e depois de o governo ter criado um grupo de trabalho para estudar novas medidas..O PSD é o partido que apresenta mais diplomas, e também os que podem causar mais polémica, como o aumento da pena ou a proibição de a vítima se recusar a depor em tribunal. A deputada Sandra Pereira tem consciência disso, mas sublinha que o PSD vai para esta discussão sem uma posição definitiva. "Quisemos dar um contributo para que se lime as arestas e as entropias do sistema. Queremos provocar o debate político e não vamos com posições fechadas.".Medidas para proteger as crianças.No capítulo da proteção dos filhos das vítimas de violência doméstica, há propostas do Bloco de Esquerda e do PAN. O BE, por exemplo, quer que as crianças que vivam neste contexto ou que o testemunhem sejam consideradas vítimas especialmente vulneráveis. E que, após a constituição de um arguido, o tribunal decida, num prazo máximo de 48 horas, as medidas de coação a aplicar. E ainda que em 72 horas se proceda à inquirição das vítimas, incluindo as crianças, para que o depoimento possa ser usado no julgamento..Já o PAN propõe medidas com vista à regulação das responsabilidades parentais. Nesse sentido, preconiza que as acusações e as decisões transitadas em julgado que apliquem medidas de coação restritivas de contactos entre progenitores sejam comunicadas à secção de família e menores da residência do menor..Uma rede pública que integre uma Comissão Nacional de Prevenção e Proteção das Vítimas de Violência e Comissões de Proteção e Apoio às Vítimas de Violência, bem como uma rede pública de casas de apoio são as propostas do PCP..O CDS defende que quem ameaçar outra pessoa de morte, ou a sua integridade física, liberdade pessoal, autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma a provocar-lhe medo, seja punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias.