"Os teus pais estavam bem quando te deram esse nome?".A pergunta foi-lhe feita por um orador numa palestra a que assistia. A reação dos presentes dividiu-se: "Tendo em conta a sensibilidade cultural em geral, a maioria riu-se. Só alguns começaram a reclamar." Ela, conta, ficou triste. "Fico a meditar sobre estas coisas. As pessoas acham que já não existe racismo. Mas vejo, por exemplo, que ficam chocadas com as minhas notas - por serem boas. E acham que sou especial porque "não sou como os outros".".Os outros negros, bem entendido. Dussu Djabula, com 19 anos e no 2.º ano de Direito na Universidade Nova, é negra. Nasceu na Guiné-Bissau e vive em Portugal desde bebé. É portuguesa, como os pais. Durante parte do seu percurso escolar, foi a única negra nas turmas. E nunca teve um professor negro. "Até mo perguntar nunca tinha sequer pensado nisso. Habituamo-nos. Por exemplo, pensando no assunto, não me lembro de ver um negro na TV a apresentar notícias ou num debate. As pessoas não entendem o quão importante é para as minorias olhar para a TV ou para os cartazes dos partidos e ver negros. Não entendem o que é não ter representação. Ver negros ali, além do mais, faz-nos sentir que também podemos. Estou muito feliz por nestas legislativas terem sido eleitas mulheres negras.".Até porque, explica, "não tem graça ser a primeira negra em tudo. Agora na Nova sinto-me melhor porque há muitos mais negros. São sobretudo alunos dos PALOP, creio". Não tem graça ser a única, ponto. Chegou a ter colegas nas aulas, numa escola pública em Lisboa, a mandá-la para a sua terra. "Foi na turma que tive do 5.º ao 9.º ano. Calava-me. Até porque esperava que os professores dissessem alguma coisa." Não disseram..Confessa nunca ter contado essas experiências aos pais. "A minha mãe é copeira e o meu pai astrólogo, e são muito presentes. Apoiam-me muito. E tiveram de se habituar a que eu tenha passado de ser uma pessoa só focada nos estudos para alguém que só quer fazer ativismo. A minha irmã a seguir a mim - tenho três irmãos mais novos - vai pelo mesmo caminho. Adoro."."50% das pessoas acham que o feminismo é um movimento pela superioridade".Terá, aliás, sido a necessidade de não só não se calar como de agir sobre as coisas que fez esta participante habitual das olimpíadas nacionais de Filosofia, que teve 20 no exame de História do 12.º ano, a decidir-se por Direito..O clique da passagem para o ativismo, porém, deu-se em fevereiro, "depois daquele surto de mortes de mulheres. Estávamos a falar de violência doméstica na aula de Teoria da Norma Jurídica e dos acórdãos que têm saído e a professora disse que a lei não é necessariamente má, o problema está na aplicação, na prática. E isso deu-me a força de querer tomar uma posição pública. Pus-me a pensar no que fazer e lembrei-me da campanha He for She [campanha/movimento da ONU lançada em setembro de 2014 pela atriz britânica Emma Watson e que visa tentar trazer toda a gente, a começar pelos homens e pelos rapazes, para a luta pela igualdade de género]. Resolvi entrar em contacto com o He for She Portugal, mandei-lhes um e-mail a dizer que queria trazer o movimento para a faculdade de Direito, e eles disseram que podia fazer o que quisesse"..A seguir falou com a direção da faculdade, que lhe deu o OK. E começou o trabalho. "A maioria dos meus colegas não conhecia o movimento He for She, sabiam só que tinha que ver com a Emma Watson. E muita gente acha que já há igualdade, sobretudo as pessoas de Direito, porque acham que se está na lei, pronto. Mas obviamente existe uma falha entre o que está escrito e o que é feito." Suspira. "E 50% das pessoas estão mal informadas, acham que o feminismo é um movimento pela superioridade. Há imensas raparigas a dizer que nunca sofreram discriminação. E eu digo OK, ainda não entraste no mercado de trabalho, não tiveste uma série de experiências.".Será preciso entrar no mercado de trabalho para sentir o machismo e a discriminação de género? Dussu reflete: "Não. Claro que não. Até na faculdade - como dizer-se que um professor dá melhor nota por levares decote.".As dificuldades prosseguiram no processo de recrutamento. "Fizemos um formulário Google a explicar tudo, o que é o He for She e que equipas íamos formar, e mandámos um e-mail. Nos dois primeiros dias, só responderam raparigas." Num movimento com o título ele por ela é um pouco irónico, não? "Acabámos por ter rapazes. Mas são cinco em 33 pessoas. É mais um She for She." Ri-se. "E, sim, incomoda-me. Sei que não é necessariamente culpa minha, mas é contraditório e parece que estamos a passar a mensagem oposta à que queríamos passar."."Estou muito feliz mas também assustada com a responsabilidade".Serem muito mais elas do que eles, porém, não esmoreceu Dussu. "Somos 33 que se juntaram com um único propósito, o de que o He for She passe a fazer parte da cultura da Nova. Reunimo-nos nos cafés, por videochamada, na esplanada da faculdade de Ciências Sociais e Humanas [na Avenida de Berna] e a nossa sede é no campus de Campolide [onde fica a faculdade de Direito]. Começámos por pensar só na minha faculdade, mas apareceu tanta gente com tanto interesse que percebemos que queríamos que fosse para a universidade toda.".Criaram uma associação - a He for She UNL - e veio a ideia de organizar eventos. "Vamos ter quatro só nossos - sobre mulheres na comédia, no direito, nas Forças Armadas e no desporto - com a estrutura de uma palestra, e uma grande conferência, durante dois dias, com patrocínios.".A conferência, que ocorrerá em fevereiro, tem tido "ótimo feedback tanto por parte de convidados como de patrocinadores". Conseguiram-nos da forma mais simples possível: "Fomos ao LinkedIn, pesquisámos e mandámos uma mensagem de apresentação. E as pessoas responderam: empresas como a EPAL e o BNP Paribas disseram que sim. "Em maio era uma ideia, em agosto tornou-se uma realidade. Não esperava isto, passou a ter proporções gigantescas. Estou muito feliz mas também assustada, porque é uma grande responsabilidade.".A conferência vai ter a participação de dois enviados da ONU, do Gabinete contra a Droga e o Crime - "lidam muito com a violência com base no género" - e estão à espera da resposta do He for She. Entretanto, criaram uma associação, a He for She UNL..No meio disto tudo, Dussu continua a tirar boas notas e trabalha em part-time num call center. "Como queria fazer Erasmus comecei a trabalhar para juntar dinheiro, sempre quis ser autossuficiente. Depois percebi que afinal não queria Erasmus, queria fazer o mestrado lá fora, mas dá-me jeito ter dinheiro para poder comprar os meus livros, fazer os cursos que quero e não ter de me preocupar com o pagamento de propinas.".Para terminar, uma dúvida: tendo uma consciência tão clara da desigualdade em função da cor, porque decidiu criar uma associação para combater a desigualdade de género em vez dessa outra? "Não é que o racismo não seja relevante, porque o sinto. Mas sou impulsiva e tive aquele impulso por causa das mortes daquelas mulheres. E na verdade nunca consigo saber se me sinto injustiçada por ser mulher ou por ser negra."