A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) adjudicou à Corevalue Healthcare Solutions, Lda. a contratação de profissionais de saúde para o preenchimento de horas nas várias unidades prisionais no ano de 2018. A empresa contratou médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, auxiliares de ação médica e outros, mas não pagou. A DGRSP diz que a responsabilidade é da empresa, à qual pagou à cabeça as horas contratualizadas..O DN sabe que há ações individuais a correr em tribunal de profissionais que têm quantias avultadas a receber por prestação de serviços, há denúncias que foram feitas aos ministérios da Justiça e da Saúde, à Procuradoria-Geral da República, à Provedoria de Justiça, aos sindicatos e às ordens das classes..Mas, segundo explicaram ao DN, parece que nada há a fazer, pois, apesar de ter sido o Estado a contratar a empresa, a responsabilidade da prestação de serviços é totalmente desta. A questão que estes profissionais põem é exatamente a forma como algumas destas empresas funcionam no recrutamento para a área da saúde..Até porque, dados divulgados pelo próprio governo revelam que só em 2017 foram canalizados mais de 120 milhões de euros para contratos públicos com empresas de recrutamento para a área da saúde.."É muito dinheiro. E o Estado está a confiar em empresas onde não há contratos, onde tudo é feito ao telefone ou por e-mail, contactos que só são disponibilizados depois de nos inscrevermos no site deles para nos candidatarmos às horas disponíveis e de termos sido aceites, mas neste momento já nem estes contactos estão ativos", explica ao DN Inês Carriço, uma das enfermeiras lesadas. "Alguém deveria assumir responsabilidades", defende a médica Teresa Nóbrega..Ao todo, dizem, só em Lisboa deve haver mais de 30 profissionais que reúnem na totalidade mais de 40 mil euros em dívida por horas em 2018, mas acreditam que a nível nacional estes números sejam bem mais elevados..Empresa não pagou Segurança Social de trabalhadores.Mas há ainda outra situação de incumprimento por parte da empresa junto da Segurança Social (SS). Inês Carriço explica: "Trabalhei para a empresa no ano de 2017 porque queria mesmo ter experiência profissional na área prisional, gostei do trabalho, pagaram-me tudo, mas fiz retenção na fonte e a empresa não pagou à SS. Só soube da situação quando fui notificada para o pagamento da dívida, o que recusei fazer. Como eu há outros colegas nesta situação e com montantes a pagar à Segurança Social mais avultados. A dívida em relação a mim é de cerca de 400 euros." A enfermeira sabe que a empresa já foi notificada duas vezes pela SS, mas nunca respondeu..A médica Teresa Nóbrega tem em falta entre 600 e 800 euros em horas trabalhadas e não pagas. Tudo começou quando no ano passado respondeu a um anúncio da CV Healthcare Solutions para fazer horas em várias prisões da área de Lisboa. Registou-se no site deles e enviou, como pedido, a cédula profissional e o currículo. "Só isto, acho que nem confirmam nada", salienta. Foi aceite e colocaram-na no Hospital de Caxias. O contrato, verbal, pois nada havia escrito, era para cumprir 40 horas nos meses de novembro e de dezembro, que seriam pagas 45 dias após a realização e entrega de recibo verde. Não estranhou, porque "é assim que funciona a maioria das empresas de recrutamento"..Como contacto, que só lhe foi dado depois de ter sido contratada, apenas um número de telemóvel e mais tarde um e-mail, para onde fez todas as reclamações e exigências após não ter recebido como era previsto. "Primeiro começaram por dizer que aguardavam o pagamento do cliente - ou seja, neste caso da Direção-Geral de Reinserção dos Serviços Prisionais -, depois deixaram de responder aos e-mails e de atender os telefones", afirma.. A empresa estava a pagar cinco euros à hora aos enfermeiros e 25 aos médicos, mesmo assim não pagava desde o início do ano de 2018. A enfermeira Ana Rita Costa, também contratada pela empresa para prestar serviço no Hospital de Caxias durante vários meses de 2018, tem mais de mil euros a receber. Fez contactos com a empresa e denunciou a situação à Ordem e ao Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, mas não obteve qualquer resposta..Neste momento, nenhuma das três tem esperança de que a situação se resolva, mas, mais uma vez, salientam: "Como é possível uma empresa que trabalha para o Estado desaparecer e ninguém assumir responsabilidades?".Apesar das dívidas, neste ano foram-lhe adjudicados mais dois contratos públicos. De acordo com a informação recolhida pelo DN junto do sitewww.basegov.pt, é possível identificar mais de uma centena de contratos da empresa com o Estado, para prestação de serviços, desde 2015, ano em que iniciou a atividade. Ainda neste ano, e segundo uma última atualização no site da CV Healthcare Solutions, Lda., são anunciados mais dois contratos públicos realizados em fevereiro e em setembro de 2019, já depois das denúncias feitas a várias entidades e de queixas divulgadas publicamente no Portal da Queixa. A Deco confirmou ao DN não ter qualquer registo de queixa sobre esta empresa, embora tenha em relação a outras..Jorge Paulo Roque da Cunha, dirigente do Sindicato Independente dos Médicos, disse ao DN que o problema está no facto de os cuidados médicos nos estabelecimentos prisionais estar a ser feito em prestação de serviço, e que há muito se batem para que seja criada uma carreira para estes profissionais pelo Ministério da Justiça..Jorge Rebelo, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, confirmou ao DN terem conhecimento de situações de incumprimento de empresas de recrutamento na saúde, nomeadamente da CV Healthcare, mas que nada podem fazer. "Estas empresas deveriam ser fiscalizadas pela Autoridade para as Condições do Trabalho", defende..Inês, Teresa e Ana Rita são apenas três profissionais que se sentem lesadas, sobretudo porque gostaram do trabalho que desempenharam nas prisões e pela experiência profissional. Teresa e Ana Rita regressaram ao Hospital de Caxias, contratadas diretamente pelo Ministério da Justiça, e defendem que "assim é que deveria ser. Dá outra segurança e continuidade no trabalho, bem como no acompanhamento que se dá aos doentes", explica Teresa Nóbrega.. Na internet, a empresa continua a ser identificada como de prestação de serviços na área da saúde com CAE para exercer atividades na prática médica clínica, especializada, ambulatório; atividades de tradução e interpretação; fabricação de material ortopédico e próteses e de instrumentos médico-cirúrgicos. O site, em que ainda é visível a sua constituição, informa que tem entre 11 e 50 funcionários e menciona os contratos públicos que lhe foram adjudicados desde 2015..Neste momento, há ainda registo em plataformas de recrutamento, como o LinkedIn e o Indeed, anúncios desta empresa para profissionais interessados em reforçar as suas equipas no norte do país..Serviços prisionais cancelaram contrato com a empresa em janeiro deste ano. O DN tentou contactar a empresa através do telemóvel e do e-mail dado aos profissionais, que já não funcionam. O endereço www.cvhs.pt que consta no site da empresa diz que não é possível aceder. Os profissionais lesados dizem que muita coisa lhes tem sido dita sobre a empresa: "Que mudou de dono, de nome, que está em falência, mas ninguém sabe ao certo o que aconteceu." O DN contactou várias empresas com nomes semelhantes para tentar confirmar a informação obtida de que tinha sido vendida ou mudado de nome, mas em vão. Todas afirmaram conhecer a empresa de nome, mas que nada têm que ver com a CV Healthcare Solutions, Lda..A DGRSP confirmou também ter trabalhado com esta empresa, mas que declinou o contrato a 1 de janeiro de 2019. Mais: em 2018, a DGRSP diz que aplicou à empresa sanções pecuniárias no valor de 90 690,31 euros pelo incumprimento de horas contratualizadas. No entanto, não especifica se estas sanções foram pagas..Na resposta às perguntas do DN, esta direção confirma ter tido conhecimento da falta de pagamento a profissionais contratados e que, em janeiro de 2019, "entrou em contacto com a referida empresa no sentido de que - tendo informalmente tomado conhecimento sobre a alegada situação de existência de dívida a trabalhadores da empresa que prestavam serviços nos estabelecimentos prisionais e, embora não pretendendo efetuar juízos sobre a matéria, não conseguindo deixar de expressar algum desconforto pela situação - veria com agrado a regularização atempada da dívida"..A DGRSP afirma nada poder fazer, já que, "de acordo com as normas da contratação pública e da legislação laboral, a contratação de prestadores de serviços é da responsabilidade das empresas e não DGRSP"..No Portal da Queixa são muitas as situações relatadas sobre esta empresa. Os ministérios da Justiça e da Saúde têm conhecimento de como funcionam as empresas de recrutamento, os sindicatos reclamam uma carreira própria para os profissionais das prisões e mais fiscalização da Autoridade para as Condições do Trabalho, mas os profissionais prestaram trabalho, não foram remunerados e, ainda por cima, foram notificados pela Segurança Social para pagar dívidas que não são suas. E quem responde pela empresa, até agora ninguém. Quem responde pela contratação da empresa, também ninguém. Os profissionais pedem que, então, se mudem as regras.