Segunda-feira 3 de junho, os moradores da zona da Sé/Largo de Santo António, em Lisboa, foram surpreendidos com a algazarra persistente de um grupo de gaivotas à mistura com o ruído de um motor: as aves procuravam "expulsar" um drone que durante toda a manhã e grande parte da tarde cirandou junto aos telhados dos edifícios circundantes, pairando à altura das janelas dos últimos andares, a poucos metros e com linha de visão direta para dentro das casas. Lá em baixo, o largo em frente à igreja que celebra o santo padroeiro da cidade estava ocupado por equipas de filmagens da RTP..A direção de programas da RTP confirmou ao DN que o drone em causa, propriedade de uma produtora, estava a ser utilizado no âmbito da produção da empresa pública. Mas, apesar de ter sido efetuado um aviso aos moradores de que iriam decorrer filmagens e ocupação da via relacionadas com os casamentos de Santo António, não existiu qualquer informação prévia, e muito menos pedido de autorização, para a utilização do aparelho voador junto às respetivas propriedades privadas..Sucede que de acordo com um acórdão de abril do Tribunal da Relação do Porto, assinado pelos desembargadores Miguel Baldaia de Morais, Jorge Seabra e Fátima Andrade e dizendo respeito à captação de imagens de uma propriedade privada através de um drone assim como a sua divulgação, a simples captação de imagens do domicílio de alguém sem autorização do próprio é um ilícito..Está em causa, lê-se na decisão, "a proibição de introdução não autorizada em casa alheia, a proibição de observação às ocultas do domicílio de outrem e das pessoas que nele se encontrem, bem como a proibição de captação fotográfica ou por qualquer outro meio (v.g. por teleobjetivas, por vídeo ou por intermédio de drones) de imagens do interior do domicílio no seu conceito amplo.".E explica: "O domicílio integra o que se vem denominando de "núcleo duro da vida privada", sendo certo que nesse núcleo estará naturalmente o que se passa no interior da residência de cada qual, e na área, privada, que a circunda (logradouro, jardim, parque, etc.), já que a casa é (...) "o último reduto da privacidade de cada um, o lugar onde cada pessoa, em princípio, está como quer e só com quem quer"..Para concluir: "O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental de personalidade, caracteriza-se juridicamente como inato, inalienável, irrenunciável e absoluto, no sentido de que se impõe, por definição, ao respeito de todas as pessoas. Consequentemente, sempre que terceiros registem ou documentem imagens do domicílio de outrem pela forma descrita [no caso, utilizando um drone] e sem a anuência do titular do respetivo direito de personalidade tal consubstancia uma violação objetiva do mesmo, isto é, independentemente da intenção do agente. (...) Ao captar, sem o consentimento dos autores, imagens da propriedade destes através de um drone que a sobrevoou, passando essas imagens a fazer parte de um vídeo que divulgou nas redes sociais (sendo aí alvo de várias visualizações e partilhas), praticou, pois, um facto ilícito (...), porque violador do mencionado direito absoluto.".Tribunal condena mas regulamento dos drones não impede.O caso, no qual a ré é a empresa Lanidor, sendo os autores da ação os donos de uma propriedade em Águeda, diz respeito a filmagens efetuadas em 2017 para um vídeo promocional da empresa, no qual a propriedade referida surge durante 20 segundos no início do vídeo e no final do mesmo; as imagens são do exterior da casa e respetiva envolvente, não sendo retratados os proprietários ou o interior da habitação. A Lanidor contestou, dizendo que mesmo admitindo que agira ilegalmente, os danos não assumiam "a gravidade legalmente suposta para justificar a atribuição de uma indemnização"..O tribunal não concordou, arbitrando uma indemnização de 4000 euros e argumentando que "a gravidade do dano não tem tanto a ver com a sua dimensão ou extensão mas sobretudo com a seriedade - ou melhor, a juridicidade - da situação, o que temos por adquirido em casos como a dos autos, já que ninguém (fora das hipóteses legalmente previstas) é obrigado a "suportar" a intromissão alheia na sua residência sem o seu consentimento". E cita o catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em Direito Civil Menezes Cordeiro: "Na presença de um direito de personalidade, tal 'gravidade' tem-se como consubstanciada: a indemnização deve ser arbitrada (...). Trata-se de uma peça-chave na concretização social dos direitos de personalidade.".Parece pois óbvio que de acordo com o entendimento dos desembargadores citados a tomada de imagens - ou sequer o "olhar" de quem opera um drone - do interior de um domicílio é ilegal e lesa direitos de personalidade "absolutos" se não for autorizada. Mas, contraditoriamente, a legislação em vigor para o uso de drones e captação de imagens (e som) através dos mesmos não só não obriga a qualquer pedido de autorização prévio a particulares para voar sobre e filmar as suas propriedades - e até pessoas - como não estabelece qualquer restrição à filmagem em meio urbano, onde é praticamente impossível não captar imagens de propriedades privadas e de pessoas..De facto, se para a ocupação do espaço público por equipas de cinema ou televisão, ao nível do solo, é necessária autorização da Câmara de Lisboa e pode ser mesmo necessário, caso se trate de filmagens "comerciais" - para publicidade, por exemplo -, o pagamento de taxas, para a ocupação do espaço público aéreo das ruas da cidade, entre os edifícios, e captação de imagem e som nas mesmas a autarquia não é, de acordo com o respetivo gabinete de imprensa, tida nem achada..A entidade à qual cabe autorizar a captação de imagens através deste tipo de dispositivos é a Autoridade Aeronáutica Nacional (AAN), que depende do Ministério da Defesa. Para tal, a AAN aplica uma lei de 1958, o decreto-lei 42071, que versa sobre "Execução de fotografia e cinematografia de bordo de aeronave" (cuja portaria de regulamentação, de 1960, impunha visionamento prévio "por um oficial delegado do Estado-Maior da Força Aérea ou do comando responsável" o qual "se pronunciaria sobre a sua divulgação, no todo ou em parte"). Aplica-se também o regulamento da ANAC - Autoridade Nacional da Aviação Civil -, que impõe zonas de exclusão absoluta, as dos chamados "corredores aéreos", destinadas ao trânsito de aeronaves, e ainda as de exclusão militar. Às quais acrescem casos como os de órgãos de soberania como o Parlamento, ministérios e tribunais, assim como as representações diplomáticas e as penitenciárias: à partida, é interdito usar drones nessas zonas e mais ainda captar imagem ou som..Por exemplo, no que respeita à sede da Presidência da República, o Palácio de Belém, a AAN não pode autorizar filmagens sobre o palácio e jardins, e mesmo nas zonas circundantes a Presidência tem de ser consultada caso a caso..Porém, para autorizar sobrevoo e filmagens em zonas densamente povoadas, e onde um drone que filma ou fotografa inevitavelmente "olhará" para dentro da propriedade privada e com grande probabilidade devassará a intimidade das pessoas, não há qualquer limitação, admite a AAN através do seu departamento de imagens aéreas: "Nós Autoridade Aeronáutica Nacional temos por atribuição sancionar as imagens do ponto de vista da segurança; não temos competência para sancionar as questões da privacidade." E explica: "Os nossos critérios para autorizar passam por verificar se as filmagens vão ocorrer numa 'zona sensível'.".Como identificar um drone que nos filme?.Se à AAN cabe sancionar a tomada de imagens, à ANAC - Autoridade Nacional de Aviação Civil - cabe zelar pelo cumprimento do regulamento em vigor - o 1093/2016, que "aprova as condições de operação aplicáveis à utilização do espaço aéreo pelos sistemas de aeronaves civis pilotadas remotamente (drones)" -, autorizando os voos que não caibam na "regra geral que confere liberdade para efetuar voos diurnos, à linha de vista, até uma altura de 120 m (400 pés), nos casos em que as aeronaves não se encontram a voar em áreas sujeitas a restrições ou na proximidade de infraestruturas aeroportuárias.".Entre as situações que implicam autorização da ANAC está "voar sobre concentrações de pessoas ao ar livre" - "entendendo-se como tal mais do que 12 pessoas", sendo certo que no caso das aeronaves "brinquedo" é mesmo proibido voar sobre pessoas e é obrigatório manter uma distância de pelo menos 30 metros em relação a infraestruturas de terceiros. Esta determinação, porém, tem exclusivamente a ver com questões de segurança; as de privacidade são apenas referidas no preâmbulo do regulamento, quando este frisa que "não afasta a necessidade de cumprimento, por parte dos operadores e pilotos destas aeronaves, de outros regimes jurídicos que sejam aplicáveis", nomeadamente a Lei de Proteção de Dados Pessoais..Esta obrigatoriedade, porém, não está determinada em qualquer lei específica e sobretudo, como já foi visto, não implica qualquer autorização prévia. O que significa que num caso como o relatado no início do texto quem considerasse que os seus direitos de personalidade tinham sido violados teria de começar por tentar identificar o responsável pelo drone e a seguir descobrir a quem apresentaria a queixa. Ora, se não for óbvio quem está a operar o drone, apesar de a lei 58/2018 estabelecer que têm de estar registados (mediante pagamento de taxa e numa plataforma digital da ANAC, que por sinal ainda não foi criada), não há nenhuma forma de alguém que vê um drone no ar identificar o número do aparelho. Esta norma só tem relevo no caso da captura do aparelho..É tendo em conta essa dificuldade que uma das propostas que a Comissão Nacional de Proteção de Dados faz para a regulamentação dos drones é que estes, além de estarem registados, tenham obrigatoriamente um chip de geolocalização. Para que, explica Clara Guerra, da CNPD, "quem vê um drone possa ir a um site e identificá-lo pela localização e assim também ao responsável por ele".."É uma intrusão imensa, dizemos isso desde 2014".Sublinhando que há muito a CNPD anda a chamar a atenção para os problemas que os drones criam em termos de privacidade - "É uma intrusão imensa, dizemos isso desde 2014" -, Clara Guerra chama a atenção para os vários pareceres da instituição sobre o assunto. O último dos quais, de fevereiro, diz respeito a uma proposta de lei do governo (173/XIII, chumbada em abril) e conclui que esta não protegeria adequadamente o direito à vida privada..Desde logo, por só se debruçar sobre a captação de imagens, ignorando a de som, que, comenta o parecer, "pode ter um impacto ainda mais significativo sobre a privacidade", assim como tecnologias como a do uso de infravermelhos ou de recolha de dados biométricos, ou seja, de reconhecimento facial.."Com um detetor de infravermelhos pode-se saber quantas pessoas estão numa casa e a fazer o quê", explica Clara Guerra. "As pessoas quando estão no espaço público, apesar de manterem o direito à imagem, sabem que podem ser vistas, pelo que podem proteger-se, mas o reduto da casa é o seu castelo, há expectativa de privacidade total. E com determinada tecnologia pode-se ver, através de paredes, por exemplo, o que as pessoas estão a fazer no seu quarto.".Também pela existência dessa tecnologia a distância de "segurança" de 30 metros em relação a infraestruturas de terceiros, que a proposta de lei impunha, é vista pelo parecer como "insuficiente para prevenir a captação de imagens suscetíveis de restringir de modo intolerável a vida privada." E explica porquê: "Tendo em conta a capacidade de resolução de máquinas fotográficas e de vídeo que podem ser acopladas aos drones e se pensar que essas infraestruturas podem ser por exemplo casas de habitação, em especial com jardins, escolas, com áreas exteriores de recreio, ou hospitais, não pode ignorar-se o elevado impacto sobre a privacidade e a liberdade (...).".Já o facto de a proposta de lei indicar que passaria a haver espaços públicos destinados à operação de drones para fins lúdicos e recreativos, em relação aos quais a AAN não teria de dar autorização para a captação de imagens, é encarado pela CNPD como uma demissão da administração pública de deveres a que está obrigada..Porque, diz a comissão, aquela "não pode ignorar que sobre ela recai também o dever de garantir que terceiros não afetem os direitos, liberdades e garantias (...). E nessa vertente (...) é mais do que recomendável que a lei vincule a administração pública central, regional e local, na definição de tais espaços, a garantir o respeito por aqueles direitos." Para tal, a CNPD sugere que a lei inclua o dever de a consultar previamente, para que se possa prevenir "o risco de lesão irremediável sobre a vida privada.".Por outro lado, propõe que a delimitação dos espaços públicos que sejam considerados "livres", ou seja, de livre captação de imagens - informação que o diploma alvo do parecer estipulava dever ser dada aos operadores dos aparelhos - deve ser publicitada nos locais e de outras formas, para que as pessoas saibam, quando circulam neles ou nas proximidades, ao que podem estar sujeitas.."É o faroeste, tudo é possível".Apesar do óbvio risco que os drones representam para a privacidade, a CNPD não tem recebido queixas a eles relativas, enquanto no que se refere a câmaras de vigilância, por exemplo, são bastante numerosas..Um dos fatores para a inexistência de participações relativas a estes aparelhos poderá ser a dificuldade em identificar o alvo da queixa (quem opera o drone), além da impossibilidade de saber, olhando para um drone em voo, se este está a captar imagens e som. E há, claro, também a relativa novidade dos equipamentos e a falta de informação que existirá sobre os riscos de devassa que representam: é possível que a maior parte das pessoas os encare sobretudo com um brinquedo..Um artigo recente da revista Forbes debruça-se precisamente sobre a forma como os americanos veem os drones, citando vários inquéritos levados a cabo no país. Nestes, é notória a preocupação com o uso deste tipo de aparelhos para vigilância do Estado e com as violações de privacidade e a possibilidade de discriminação (nomeadamente baseada na etnia)..Como em Portugal, nos EUA não existe restrição, a priori, do voo e da captação de imagens em áreas residenciais, o que faz o autor concluir: "Para a maioria, isto soará como um faroeste, em que tudo é possível. E muitos ver-se-ão como vítimas potenciais de violação da privacidade.".Mas não são só as possíveis vítimas, especialistas em direitos fundamentais, académicos e jornalistas a preocupar-se com esta questão. Surpreendentemente, na Austrália, a associação que representa a indústria de drones (Australian Association for Unmanned Systems - AAUS) tomou a iniciativa de tentar pensá-la em conjunto com uma associação de defesa das liberdades e garantias, a Liberty Victoria, e apresentou um relatório, em 2015, apelando a que o país legisle de modo a fazer face aos desafios desta tecnologia para a privacidade, uniformizando as regulamentações dos diferentes Estados..O documento chama a atenção para o facto de ser possível apresentar queixa ou intentar uma ação quando a privacidade é violada (como aconteceu no caso da Lanidor), e eventualmente ganhá-la, mas não existir qualquer disposição legal que permita prevenir essa violação e portanto a lesão irremediável de um direito fundamental - exatamente o que se passa em Portugal..Outro caso é o da França, que legislou no final de 2018 sobre o uso de drones, e tem uma proibição geral de voo de aparelhos não tripulados sobre as cidades e aglomerações de pessoas - que terá sido aplicada, à partida, por motivos de segurança e não de respeito pela privacidade -, estando a utilização profissional de drones nas mesmas circunstâncias sujeita a autorização dos governos civis locais. Aliás, já em maio de 2014 um estudante de 18 anos fora condenado a uma multa de 400 euros por ter feito voar um drone na cidade de Nancy..De acordo com a lei francesa em vigor, as pessoas que estão nas imediações de um drone devem ser informadas sobre se este está equipado com uma câmara ou pode registar dados pessoais; é interdito captar imagens que permitam identificar pessoas - caras, matrículas - sem a respetiva autorização; todas as difusões de imagens assim captadas devem ser objeto da autorização das pessoas que nelas figurem ou dos proprietários, no caso de espaços privados (casas, jardins, etc.); em caso de violação da vida privada, ou seja, captação de imagens ou palavras de pessoas sem o seu consentimento, a pena é até um ano de prisão e 45 mil euros de multa..Num mundo e num país em que se debateram acaloradamente os riscos para a privacidade do uso de câmaras de segurança, privadas e públicas, nas ruas e se obriga a Google Earth a "borrar" as pessoas e as matrículas apanhadas no registo fotográfico dos veículos da empresa, uma tecnologia que permite a qualquer um vigiar, fotografar, filmar e captar som em qualquer lugar, incluindo a nossa casa, parece estar a passar entre os pingos da chuva.