"Estamos bastante entusiasmados com o que este projeto trará"

Miguel Santos coordena uma equipa com elementos da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Med.ULisboa da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e do Instituto Ricardo Jorge que desenvolve o projeto ILs4Treatment que estuda a possibilidade de retirar a parte tóxica dos remédios para a malária e o ébola. É uma aposta na prevenção e combate às infeções pela covid-19.

Uma equipa de investigadores liderada por Miguel M. Santos está a desenvolver medicamentos à base de fármacos contra a malária e o ébola, retirando-lhes a parte tóxica, através de líquidos iónicos e sais orgânicos. Entre a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Ricardo Jorge está a nascer uma nova esperança na prevenção e no combate às infeções causadas por covid-19.

Que projeto é este, que utiliza fármacos contra a malária e o ébola?
O projeto "ILs4Treatment - Líquidos iónicos e sais orgânicos de fármacos contra a malária e o ébola redirecionados para prevenção e cura da covid-19" nasceu na sequência da abertura de candidaturas por parte da Fundação para a Ciência e Tecnologia para projetos de investigação em várias áreas relacionados com a covid-19. A ideia surgiu no seguimento de um dos trabalhos que temos vindo a realizar nos últimos anos no nosso grupo de investigação, e no qual somos bastante fortes.

Qual é o foco da investigação?
Esta área de investigação foca-se no desenvolvimento de novas formulações iónicas de medicamentos (baseadas em líquidos iónicos e sais orgânicos) que possuam propriedades farmacológicas aprimoradas, combinando o seu princípio ativo com outros componentes (que funcionem como contraiões) não tóxicos e inativos. Com esta abordagem conseguimos aumentar a sua biodisponibilidade (quantidade de fármaco absorvida pelo corpo), entre outras propriedades, sem no entanto aumentar a sua toxicidade.

E será utilizado em exclusivo no tratamento da covid-19?
Frequentemente observamos também melhorias na sua atividade terapêutica em sistemas in vitro, nomeadamente com fármacos antitumorais e antibióticos. Neste último caso verificámos inclusivamente a eliminação de resistência microbiana a antibióticos comuns quando utilizados nesta forma iónica. Com este projeto, o nosso propósito é idêntico, tirando partido do estado da arte no que concerne aos fármacos ativos contra a SARS-CoV-2. Estamos bastante entusiasmados com o que este projeto trará, considerando os resultados que temos tido no passado.

Quantas pessoas envolve? Quem são e o que fazem?
A equipa deste projeto consiste principalmente em cinco investigadores doutorados em Química e em Virologia, distribuídos por três centros de investigação. Eu e os meus colegas Luís Branco e ŽZeljko Petrovski estamos integrados no Laboratório Associado para a Química Verde da Rede de Química e Tecnologia (LAQV-REQUIMTE), mais precisamente no departamento de química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Nós somos responsáveis pelo desenvolvimento das formulações iónicas, o que inclui a sua preparação e caracterização físico-química. Após esta primeira fase, os compostos seguirão para o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e para o iMed.ULisboa da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa para a realização dos ensaios in vitro de toxicidade e atividade antiviral, pelas investigadoras Helena Rebelo-de-Andrade e Vanessa Correia.

De acordo com as informações disponíveis, este projeto consiste em desenvolver medicamentos capazes de prevenir e curar as infeções pela covid-19, com base em fármacos já existentes. Qual é a grande mudança/adaptação que permite outro resultado?
Este tipo de formulações iónicas está agora a começar a ser utilizado pela indústria farmacêutica pois há já um número considerável de trabalhos que atestam a sua potencialidade. Por um lado, o aumento da biodisponibilidade leva à redução da quantidade de fármaco necessária para surtir o efeito terapêutico desejado. Isto tem duas vantagens: redução da dose de fármaco a tomar e redução dos efeitos secundários associados. Por outro lado, se conseguirmos aumentar efetivamente a sua eficácia terapêutica, será ainda mais vantajoso. Todos estes benefícios advêm das interações estabelecidas entre o fármaco (que é convertido em anião ou em catião, dependendo da estrutura da própria molécula) e os contraiões escolhidos, os quais têm uma estrutura química desenhada especificamente para promover as propriedades que pretendemos ver potenciadas.

Um dos fármacos utilizados é um antimalárico. Tem sido bastante discutida na comunidade científica a utilização desses medicamentos. A Agência Europeia de Medicamentos avisou mesmo para os seus efeitos colaterais. Estamos a falar de algum incluído nesse rol? Ou a grande vantagem é a menor toxicidade, conseguida através dos líquidos iónicos e sais orgânicos?
Esta abordagem pode ser utilizada com qualquer fármaco passível de ser iónico, isto é, têm que ter estrutura química que lhes permita ser um anião ou um catião. Este é o caso da hidroxicloroquina, que é um fármaco barato e eficaz no combate à covid-19. O seu grande problema é a toxicidade aguda para o coração e o sistema cardiovascular, o que é um problema no caso da SARS-CoV-2, pois liga-se fortemente a uns recetores que se encontram nestas (e noutras) células, perturbando a sua função. Isto é particularmente preocupante em pessoas que têm comorbilidades deste tipo associadas. Mesmo sem uma patologia secundária deste género, as pessoas idosas têm frequentemente alguma fragilidade inerente, que é potenciada quando possuem covid-19. Ora, ao reduzirmos a dose terapêutica de hidroxicloroquina, resultante da sua transformação num sal orgânico, a sua toxicidade irá instantaneamente diminuir. Mas não só. Iremos investigar como é que as interações que se vão estabelecer entre o fármaco e os contraiões afetarão o seu modo de ação, e, por conseguinte, que melhorias surtirão em termos de efeito terapêutico.

Na vossa perspetiva, quando é que estarão disponíveis para uso no tratamento da covid-19?
Tudo o que envolve medicamentos é bastante moroso... No entanto, tratando-se de novas formulações, e não de novos fármacos em si, o processo poderá ser um pouco mais rápido. Após os primeiros resultados dos estudos de atividade antiviral teremos uma reunião com o Infarmed para delinear os passos seguintes. Mas sim, estender-se-á para além dos seis meses do projeto. Esperemos que pouco mais... Uma grande parte da comunidade científica está focada em desenvolver ferramentas para prevenir e curar a covid-19, e é um privilégio fazer parte dela.

Quando falam na prevenção, isso quer dizer que - ao contrário da maioria dos medicamentos similares - estes serão usados em doentes com sintomas ligeiros ou mesmo assintomáticos?
Não, o que queremos dizer é que poderão ser utilizados para prevenir que a infeção ocorra, mais ou menos como uma vacina. Na literatura científica são referidos outros fármacos, para além da hidroxicloroquina, que podem ser utilizados desta forma. Mas é preciso ter cuidado com isto... De facto, ao impedirem que o vírus se ligue aos recetores presentes nas nossas células, inibem a sua replicação e a instalação da patologia. No entanto, a sua toxicidade pode levar a um compromisso cardiovascular grave quando tomados durante muito tempo, o que no caso da covid-19 pode ser um período bastante extenso. Mas, reduzindo a dose terapêutica e a toxicidade, o cenário muda. Isto pode levar a que pessoas com elevada exposição ao vírus possam tomar as novas formulações destes fármacos com risco muito mais reduzido. Tudo dependerá de como a replicação do vírus será afetada, e que consequências isso poderá trazer.

Qual o investimento que representa este projeto?
O projeto "ILs4Treatment - Líquidos iónicos e sais orgânicos de fármacos contra a malária e o ébola redirecionados para prevenção e cura da covid-19" representa um investimento de 40 mil euros de fundos nacionais, provenientes do orçamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, para aquisição de bens e serviços. Contudo, esta verba será insuficiente para cobrir todos os gastos inerentes ao desenvolvimento completo das formulações, pelo que teremos necessidade de concorrer a fontes de financiamento adicionais.

Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por abbvie.pt

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