O exercício do poder continua a ser um tema vexante na prática, mas na teoria está resolvido desde o século XVI, quando Maquiavel deixou tudo explicado numa frase: a mais segura fortaleza do Príncipe é garantir que o povo não o odeia. Uma lição insuficientemente absorvida pelos concorrentes do Love on Top (TVI), cuja sétima edição estreou-se nesta semana..Todos os anos, doze pessoas chegam às areias históricas do Guincho para ganhar o jogo duplo do amor e do poder. As concorrentes femininas falam sobre passatempos e personalidades: Jéssica gosta de "sair com amigos e passear na praia"; Susana, por outro lado, prefere "ir à praia e passear com amigos". Os concorrentes masculinos optam por falar das suas raízes e predilecções. João vem da Bélgica e gosta de raparigas "com tatuagens e com bons valores". Sandro vem de Cascais, joga futebol no Abóboda e é relações-públicas no Docks. Ricardo vem de Penamacor e garante só ter três vícios: fazer musculação, lavar os dentes e falar com mulheres. "Quantas vezes lavas os dentes por dia?", pergunta a apresentadora. "Cinco, seis, às vezes sete!", esclarece Ricardo. Apesar deste sortido de origens, hábitos e ambições, todos partilham o mesmo corte de cabelo - a crista de uma catatua emergindo lentamente de um derrame de petróleo - e a mesma disrupção de expectativas sobre pêlos faciais: cada bigode quer ser uma sobrancelha, cada sobrancelha quer ser uma pestana, cada pestana quer fingir que não existe. O conceito de camisa parece ser um profundo mistério..Ainda antes de entrarem no Palácio Endemol, último refúgio natural do banho de espuma e do frasco de gel, as primeiras hierarquias são definidas: um Top Boy e uma Top Girl são eleitos pelo público. A Top Girl depressa deixa transparecer que o estatuto não lhe subiu à cabeça: "É bom ser a Top Girl, mas eu sinto-me igual a vocês", explica, gesticulando amistosamente dez unhas do tamanho de cutelos..Na manhã seguinte começam as primeiras actividades. Um jogo de verdade ou consequência provoca confissões de sentimentos: "Quando o Top Boy disse que eu era a rapariga mais fofa da casa fiquei com um sentimento..." A frase acaba assim, como uma Capela Imperfeita..Entretanto, o Top Boy mostra interesse por Susana, perante a consternação de Joana e o cepticismo de Ana. Haverá sentimentos? Será jogo? A corte reúne-se na piscina para aconselhar o Top Boy. Alguém formula a natureza do problema: "O problema é tu seres o Top Boy." O Top Boy, temporariamente perpendicular num colchão pneumático, pondera as nuances estratégicas da situação e a responsabilidade que vem com o Poder. "Mas eu curto bué dela", reflecte. "Isto é um jogo", responde um dos cortesãos, "tens de ser forte". Há uma competição de mergulho criativo. O Top Boy elege uma vencedora e proclama o seu veredicto: "Foi brutal.".Ana, que se impôs como a reserva intelectual da corte, vai construindo teorias que depois redistribui com total confiança semântica: "Eu acho que ela gosta dele, mas acho que ele é só jogo." Em termos semelhantes, o Cardeal Richelieu comentava as intrigas reais no Palácio do Luxemburgo: "Eu acho que o Luís XIII gosta dela, mas acho que a Ana de Habsburgo é só jogo.".Na privacidade do Quarto do Amor, João e Patrícia, completamente sozinhos perante um operador de câmara e trezentos mil espectadores, dedicam-se à sensualidade. João reclina-se na cama, repousando sensualmente a cabeça num prato de rebuçados, enquanto Patrícia pulveriza o seu tórax com aguaceiros de estrogénio..Cá fora, a corte fervilha. "O que eu não entendo é o teu jogo", diz Susana. "Aconteceu, pronto. Como qualquer coisa que acontece, tipo, na vida", justifica-se o Top Boy. Mais tarde, falando emocionadamente para as câmaras, com um recife de coral incrustado em cada pálpebra, Susana esforça-se por chegar ao âmago da questão: "O sentimento foi como uma bola e agora desapareceu, como se abrisse as portas para outros sentimentos.".A capacidade da bola para desaparecer e abrir as portas a outros sentimentos foi demonstrada pela Operação Especial de Informação pacientemente prometida pelos oráculos da CMTV no meio dos directos de Monchique: quatro candidatos a Top Boy do Sporting iam ser encerrados durante três horas no Teatro Capitólio e obrigados a dizer coisas em voz alta..O debate começou da maneira mais promissora possível, quando o moderador apresentou três dos participantes e se esqueceu do nome do quarto. Dias Ferreira, que mantém o hábito enternecedor de mastigar furiosamente o indicador direito sempre que não está a falar, descreveu-se como "uma pessoa frontal", e aproveitou para anunciar que ia "lançar um repto", ecoando as palavras de Ricciardi no anúncio da sua candidatura, onde também lançara o seu próprio repto. No clube mais ecléctico do país, o lançamento do repto tem tudo para ser uma modalidade de sucesso..Madeira Rodrigues tratou de elogiar diplomaticamente todos os presentes, enumerando aquilo que cada um pode oferecer ao clube: "O Dr. Ricciardi tem a experiência financeira, o Dr. Dias Ferreira conhece os estatutos, e o Rui..." A frase acabou assim, como uma Capela Imperfeita..Ricciardi usou o sempre popular "ainda bem que me faz essa pergunta", dedicando de seguida vários minutos a não responder à pergunta feita. "As pessoas olham para mim apenas como um especialista financeiro... que de facto sou", especulou modestamente, enquanto dedilhava um anel de fazer inveja aos Bórgias. Depois prefaciou com a frase "não quero entrar em pormenores técnicos" um monólogo de dois minutos em que usou as expressões "situação líquida consolidada", "valor imobiliário híbrido" e "conversão de VMOC em capital". Tentando puxar dos seus próprios galões tecnocratas, Rui Jorge Rego discorreu melancolicamente sobre "novos modelos de negócio" e a "internacionalização da marca", defendendo a necessidade da contratação de vários anglicismos - um CEO, um chairman e um expert que possa tratar do naming..O moderador foi o único a tentar introduzir alguma coerência narrativa, com uma bateria de perguntas regulares sobre o grande tema subterrâneo: "Mas o CEO vai ser Bruno de Carvalho?"; "Pode garantir que não é Bruno de Carvalho?"; "E esse plano não era o de Bruno de Carvalho?"; "Portanto concorda com Bruno de Carvalho?".A preocupação era compreensível. Bruno de Carvalho serviu nos últimos tempos como uma espécie de Plano Marshall do jornalismo televisivo nacional, que hoje consiste não em fornecer e contextualizar informação que ainda não conhecemos, mas em difundir opiniões que possamos contrastar com aquelas que já temos. O problema é que, com toda a boa vontade do mundo, nem todos conseguem fingir uma opinião sobre o combate aos incêndios, ou o défice orçamental, ou sequer sobre os limites do humor. Mas em Bruno de Carvalho encontrou-se finalmente um fenómeno sobre o qual toda a gente tinha uma opinião, desde o colunista com vontade de resumir doze páginas de Werner Müller sobre o populismo, até ao calceteiro com vontade de consolidar doze capas d"A Bola numa chave de todas as mitologias. Agora que a vaga de turismo opinativo se vai desvanecendo, aconteceu o que sempre acontece quando uma bolha rebenta: ficam os locais no meio dos escombros, afundados em dúvidas, enigmas e esoterismos estatutários, a tentar decidir a melhor maneira de substituir um conjunto de problemas por outro conjunto de problemas..Os actos eleitorais no Sporting 2011 e 2013 foram retoricamente enquadrados como revoluções. O de 2018, por consenso entre todos os candidatos e os seus intérpretes talmúdicos, está a ser enquadrado como uma correcção de excessos radicais. São, enfim, os modelos disponíveis num país historicamente pouco habituado à mudança contínua e com o tique histórico de baptizar com esperançosas maiúsculas cada corte abrupto com o passado (Regeneração, República Nova, Estado Novo, Abril, etc.). Tendo-se convencido há cinco anos de que liquidara o seu antigo regime, o Sporting tenta agora convencer-se de que está a varrer um "gonçalvismo". Não admira que, como Madeira Rodrigues assegurou na sua intervenção final, "os sportinguistas" estejam "confusos": é o que costuma acontecer aos portadores de opiniões quando perdem o objecto de conforto..Nada do que foi dito no Teatro Capitólio ajudou a dissipar a confusão. O corolário lógico desta Operação Especial de Informação, aliás, foi a sondagem telefónica conduzida para apurar quem tinha sido o Top Boy do debate. Uma infografia da CMTV anunciou triunfantemente que Madeira Rodrigues recolhera 124% dos votos. Não quero entrar em pormenores técnicos, mas foi brutal..Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia