O país que já tinha duas assembleias e dois presidentes tem agora também dois líderes da Assembleia Nacional. O Ano Novo não trouxe uma solução política para a crise na Venezuela, mas mais confusão sem fim à vista, com o presidente Nicolás Maduro instalado no Palácio de Miraflores e o líder interino, Juan Guaidó, reconhecido por mais de 60 países, a ter de saltar os muros da Assembleia Nacional. Isto depois de Luis Parra, um outro deputado opositor, expulso do seu partido por acusações de corrupção, ter sido eleito para lhe suceder no cargo..Diante do caos, Guaidó volta-se novamente para as ruas, com apelos aos protestos neste sábado e na terça-feira, quando é esperado novo frente-a-frente no Palácio Legislativo, com os dois líderes a quererem realizar sessões parlamentares. O governo de Maduro, cujos votos ajudaram a eleger Parra, convocou também uma mobilização "pela paz" para o mesmo dia, com o número dois do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), Diosdado Cabello, a dizer que a Assembleia Nacional e a oposição "não vão levar a Venezuela para uma guerra só porque lhes convém"..Dois presidentes.Quando a coligação opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD) venceu as legislativas de 2015, ficou estabelecido que a presidência da Assembleia Nacional seria rotativa entre os principais partidos da aliança. Em 2019, depois da Ação Democrática, do Primeiro Justiça e do Um Novo Tempo, chegou a vez de o Vontade Popular assumir o cargo e, com os seus principais líderes presos (caso de Leopoldo López) ou exilados, o papel caiu em Guaidó, que foi eleito a 5 de janeiro desse ano..Mas o jovem deputado, quase desconhecido, foi mais longe do que os antecessores. Quando Maduro tomou posse para um novo mandato, a 23 de janeiro, depois de umas eleições consideradas fraudulentas pela comunidade internacional, Guaidó alegou que havia vazio de poder e, com base na Constituição, autoproclamou-se presidente interino da Venezuela. Cerca de 60 países reconheceram-no, mas a expectativa de que tal levasse à saída de Maduro não se confirmou..Segundo as regras da coligação, em 2020 um outro presidente deveria ser eleito para a Assembleia Nacional, mas Guaidó tornou-se o principal rosto da oposição a Maduro e era preciso reelegê-lo. Após um ano a tentar afastar o presidente e com os protestos a esmorecer (a popularidade de Guaidó caiu de 63% em janeiro para 38,9% em dezembro, segundo a Datanálisis), a unidade da MUD estava em risco. Em vésperas da data marcada para a reeleição de Guaidó, a oposição denunciou as tentativas do governo para "comprar" o voto dos deputados e evitar que tal acontecesse..No último domingo, Guaidó e um grupo de deputados opositores foram impedidos de entrar no Palácio Legislativo. Enquanto isso, no interior, Luis Parra era proclamado líder da Assembleia Nacional com o apoio do PSUV de Maduro. O deputado eleito em 2015 pelo Primeiro Justiça foi afastado em dezembro deste partido da oposição, depois de o seu nome surgir ligado a um escândalo de corrupção. A sua eleição no domingo foi apelidada de "golpe parlamentar" pela oposição, que explicou que o ato foi ilegal porque não havia quórum (estariam presentes pouco mais de 40 dos 167 deputados). Já Maduro reconheceu Parra, falando numa "rebelião dos próprios deputados" contra Guaidó..Em resposta, este presidiu a uma sessão paralela da Assembleia Nacional na sede do jornal El Nacional e voltou a ser eleito com cem votos. Guaidó apelidou Parra de "cúmplice da ditadura" e convocou para a terça-feira seguinte uma sessão normal no Parlamento. Nesse dia, apesar da tentativa das forças de segurança para o manterem fora do edifício, Guaidó conseguiu entrar e cantou o hino no hemiciclo, onde momentos antes tinha estado Parra a presidir também a uma sessão parlamentar. Este promete "despolarizar" a Assembleia e defendeu a "normalização" da "atividade parlamentar", mas na prática as funções deste organismo foram assumidas pela Assembleia Constituinte..Duas Assembleias.Depois de a oposição ter conseguido uma maioria na Assembleia Nacional em 2015 (112 dos 167 lugares), começou o jogo de força com Maduro que, aos poucos e com a ajuda do Supremo Tribunal de Justiça (que não é considerado imparcial), a foi esvaziando de poderes. Em 2017 foi eleita a Assembleia Constituinte (que também se reúne no Palácio Legislativo). Com o boicote eleitoral da oposição, esta é dominada pelo PSUV de Maduro, tendo-se tornado uma espécie de superpoder. O seu líder, Diosdado Cabello, número dois do PSUV, reagiu aos acontecimentos desta semana apelidando-os de "triste espetáculo" entre Guaidó e Parra..Cabello disse que é "uma luta entre eles", mas lembrou que 2020 é o último ano da atual legislatura e que haverá novas eleições. Dizendo que a Constituinte "tomará as decisões que tiver de tomar" se persistir o conflito sobre quem lidera a Assembleia Nacional, e diante da "ineficácia de um órgão destruído pela oposição venezuelana", Cabello prometeu a convocação das eleições para breve, sem avançar, contudo, com datas. Reação internacional.Diante dos acontecimentos, a comunidade internacional reagiu conforme o presidente venezuelano que reconhecem. A União Europeia, incluindo Portugal, reconhece Guaidó. O chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva, considera "inaceitável" a "pretensa eleição" de Parra. Portugal é também um dos membros do Grupo Internacional de Contacto, que também reconhece Guaidó, assim como vários aliados regionais como a Colômbia ou o Brasil. Já a Rússia, um dos principais apoiantes de Maduro, reconheceu o novo presidente da Assembleia Nacional..Os EUA continuam a reconhecer Guaidó, mas o discurso do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, sofreu uma mudança. Na quinta-feira, apelou a uma "rápida transição negociada" na Venezuela para que um "governo de transição" possa organizar eleições legislativas e presidenciais em 2020. "É o caminho mais eficaz e sustentável para a paz e a prosperidade na Venezuela", disse num comunicado, no qual pediu a criação de um novo e independente Conselho Nacional Eleitoral, assim como a renovação do Supremo Tribunal. No passado, Washington só apoiou negociações que levassem à saída de Maduro..Representantes de Guaidó e de Maduro chegaram a dialogar, com a mediação da Noruega, mas as negociações acabaram em agosto sem resultados. O presidente venezuelano realizou depois uma "mesa de diálogo nacional" com partidos da oposição de menor peso, que não foram consideradas relevantes pela comunidade internacional que apoia Guaidó..Os EUA têm aumentado as sanções económicas ao governo de Maduro, mas apesar disso este mantém-se no poder graças ao apoio dos militares e de países como Rússia, China ou Cuba. A mudança de discurso surge depois de notícias de que o presidente norte-americano, Donald Trump, estaria a perder a confiança de que Guaidó possa alguma vez derrubar Maduro. E os analistas lembram que apesar de Trump estar neste momento com outros problemas, desde o Irão ao processo de destituição, há eleições no final do ano nos EUA e a Florida (onde há muitos eleitores latinos) é um importante campo de batalha..À crise política une-se a crise económica e a humana, com falta de alimentos e medicamentos. Mais de quatro milhões de venezuelanos fugiram do país nos últimos anos..O desconhecido que desafiou Maduro.Juan Guaidó era um deputado quase desconhecido, mesmo dos venezuelanos, quando a 6 de janeiro de 2018 foi eleito líder da Assembleia Nacional e, poucos dias depois, recorreu à Constituição para se autoproclamar presidente interino da Venezuela. Nascido na capital do estado de Vargas há 36 anos, viveu de perto o pior desastre natural a atingir o país. Em dezembro de 1999, um deslizamento de terras após três dias de chuvas torrenciais terá causado, na pior das estimativas, 30 mil mortos. Estudou Engenharia em Caracas (fez também uma pós-graduação nos EUA) e fez parte da Geração de 2007, o movimento estudantil que saiu às ruas contra a política do então presidente, Hugo Chávez. Em 2009 foi um dos fundadores do Vontade Popular, junto com o mentor Leopoldo López, sendo eleito deputado seis anos depois. É casado com Fabiana Rosales e tem uma filha..O deputado expulso da oposição.Luis Parra foi eleito deputado pelo partido opositor Primeiro Justiça, em 2015. Mas, em dezembro de 2019, foi expulso pela liderança partidária após uma investigação jornalística do portal Armando.info o acusar de liderar um esquema de corrupção ligado ao programa de distribuição de alimentos do governo de Maduro. Parra negou as acusações, mas estava a ser investigado junto com outros deputados por uma comissão parlamentar. Rompeu então com Guaidó, apesar de continuar a dizer que se mantinha como adversário de Maduro. A 5 de janeiro, contudo, foi proclamado presidente da Assembleia Nacional com os votos dos deputados do partido do governo, numa sessão marcada pela polémica e pela proibição da entrada no edifício de Guaidó. Parra nasceu há 41 anos no estado de Yaracuy, é casado e tem quatro filhos.