11 ABR 2020
11 abril 2020 às 00h05

África não é um laboratório

João Melo

No dia 1 de abril, num programa transmitido pelo canal de televisão gratuito LCI (La Chaine Info), especializado em notícias, em França, o chefe dos serviços de medicina intensiva e reanimação do Hospital Cochin, em Paris, Jean-Paul Mira, perguntou a Camille Locht, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (INSERM, em francês) em Lille, o que pensava da hipótese de realizar testes com a vacina BCG no continente africano, a fim de saber se a mesma poderia ser usada para tratar o covid-19.

Vale a pena reproduzir integralmente a pergunta:

"Se posso ser provocador, será que não poderemos realizar tais estudos em África, onde não há máscaras, não há tratamento, não há reanimação, um pouco como foi feito com certos estudos acerca da sida entre prostitutas: fizemos esses ensaios pois sabíamos que elas eram altamente expostas. O que acha?"

Camille Locht respondeu:

"Tem razão. Estamos a refletir sobre a realização de um estudo com esse tipo de abordagem em África, o que não impede que façamos em paralelo um estudo na Europa e na Austrália."

A pergunta e a resposta foram claríssimas.

Talvez inesperadamente para os dois cientistas franceses, a reação da sociedade foi imediata e contundente. A prestigiada organização SOS Racisme denunciou o "desprezo" das referidas declarações em relação aos "corpos negros", acrescentando que a comparação entre a sida e as prostitutas era "problemática" e "indesejável". O Partido Socialista Francês exigiu à estação televisiva onde as mesmas foram proferidas que as condenasse clara e explicitamente.
"Os nossos vizinhos não são cobaias",sublinha o comunicado do PS francês sobre o assunto.

Nas redes sociais, a cólera espalhou-se como fogo na savana. A estrela mundial de futebol Didier Drogba, nascido na Costa do Marfim, reagiu vivamente: "África não é um laboratório", disse ele. Drogba denunciou de modo enfático as "graves, racistas e depreciativas" afirmações de Jean-Paul Mira e Camille Locht, no que foi seguido por numerosos internautas, em especial africanos.

O próprio diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, comentou as afirmações dos dois cientistas franceses, não poupando nas palavras. Para ele, as "sugestões" de Mira e Locht são inadmissíveis, sobretudo tratando-se de dois cientistas. Depois de acrescentar que as mesmas são contrárias ao espírito de solidariedade exigido pela pandemia do covid-19, não hesitou em classificá-las de "racistas" e "neocolonialistas".

Ghebreyesus afirmou que as pesquisas para a descoberta de uma vacina contra a doença serão feitas em todo o mundo, de acordo com o mesmo protocolo. "África não é nem será um campo de testes", sublinhou o diretor-geral da OMS, para depois garantir que "todos serão tratados como seres humanos, pois todos somos seres humanos."

O canal televisivo onde as polémicas afirmações dos dois cientistas franceses foram veiculadas não se pronunciou sobre as mesmas, provavelmente em nome da "liberdade de expressão" (as aspas são intencionais). Limitou-se a divulgar as explicações dos seus autores. Ambos se desculparam pelas afirmações proferidas, admitindo que estas últimas, "com razão ou sem ela, podem ser interpretadas como pejorativas em relação aos países africanos".

Pergunto eu, ingenuamente (?): "Com razão ou sem ela?!"

Os cientistas franceses informaram igualmente que, após este episódio, começaram a receber ameaças telefónicas e outras, inclusive de morte. A ser verdade, e como é óbvio, tais ameaças devem ser condenadas sem qualquer ambiguidade e deverão ser investigadas pelas autoridades francesas.

Entretanto, não posso deixar de evocar Brecht:

Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem

A pandemia do novo coronavírus é, como o nome indica, um problema que afeta toda a humanidade. Como tantos dizem, em todas as partes do mundo e em todas as línguas, não poupa países, classes, idade, sexo, raças, ideologias, religiões e tantos outros fatores de divisão. Espero que, quando ela passar, sejamos todos um pouco mais humanos.

Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21.