A menos democrática das crises

Esta crise nada tem de democrática, será tudo menos isso. Quando muito exibe de uma forma brutal um problema central da nossa democracia: a desigualdade.
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Há duas semanas, um estudo do Instituto de Ciências Sociais, publicado no Expresso, contava que 5% dos portugueses conheciam pessoas infetadas com o covid-19. Eu fazia parte dessa pequena percentagem da população, aliás, eu não só conhecia vários como tinha amigos entre os infetados. Muitos deles tinham regressado de férias na neve infetados e outros apanharam o vírus em aeroportos. Já estão todos bem.

Quando o surto chegou, eu conhecia muita gente que o apanhou, hoje conheço poucos, e o número de gente contaminada cresceu como cresceu.

A maioria das pessoas com quem me relaciono estão relativamente bem protegidas contra a possibilidade de contágio, não estão a passar por dificuldades económicas nem, grande parte deles, é previsível que venham a tê-las. Longe, muito longe, da realidade de grande parte da população portuguesa.

Este vírus não chegou nem chegará a todos da mesma maneira. Neste momento, quem corre riscos diários, não inerentes à sua profissão, como os médicos, os enfermeiros e restante pessoal ligado à saúde, são os empregados de supermercados, das farmácias, homens e mulheres da recolha do lixo, motoristas de transportes públicos e todos os outros cuja atividade profissional depende da sua presença física nos locais de trabalho.

Um traço é comum a todos: são os mais mal pagos da nossa comunidade. Muitos dos operadores de caixa dos supermercados onde nos vamos abastecer, e que falam com centenas de pessoas durante o dia de trabalho, ganham pouco mais de 600 euros, por exemplo. E ligeiramente acima ou abaixo, é esse o valor que quase todos os outros nossos concidadãos das profissões referidas levam para casa.

As pessoas de quem dependemos, que arriscam a sua saúde todos os dias por nós, são miseravelmente pagas.

Já era assim? Claro que sim. Ninguém ignorava isso, como também não havia quem não soubesse que a desigualdade em Portugal é uma das mais altas da Europa. Mas esta crise deixa essa realidade ainda mais evidente.

Os lares são outro caso exemplar. É em locais sobrelotados e com menos condições que vivem os nossos velhos mais pobres. É sobretudo aí que têm acontecido as tragédias. E, claro, temos os cuidadores, outra classe muito mal paga a quem tanto devemos por estarem a proteger quem mais precisa de ajuda. A velhice e a pobreza são as vítimas principais deste vírus.

Se a crise sanitária deixa evidente a profunda desigualdade da nossa comunidade, o mesmo acontece com a económica. O aumento do índice de desigualdade é sempre uma das consequências das depressões, mas quando se parte de uma situação de grande desigualdade é bem pior.

Com a nossa principal indústria de serviços, o turismo, reduzida a escombros, com a multidão de desempregados a crescer todos os dias, mais pressão para a redução salarial vai existir, e vai ser sobretudo nas profissões já mal pagas. Se a nossa classe média estava depauperada com a última crise, pior vai ficar.

A propósito, só uma coisa vai vencer o medo de sair de casa: o da fome. O momento em que teremos de sair à rua para ir trabalhar está a chegar rapidamente, não há quem não o saiba, mas quer as autoridades queiram quer não, muita gente sairá por ter de encontrar meios de subsistência. Quem vai ser obrigado a sair de casa - e o estado de emergência vai servir a partir de agora essencialmente para isso - são os que ainda têm meios para lá permanecer.

Esta crise nada tem de democrática, será tudo menos isso. E exibe de uma forma brutal um problema central da nossa democracia: a desigualdade. É preciso referir que a pobreza do país é apenas uma das explicações para a existência de salários baixos. Há uma questão clara de redistribuição de riqueza numa terra em que, nas empresas, os mais bem pagos têm salários mais altos do que os seus congéneres em países bem mais ricos e desenvolvidos e os mais mal pagos recebem um salário mais reduzido do que nesses mesmos países. Daí até à questão da produtividade das nossas empresas vai um passo de anão, mas deixemos isso para outra altura.

É difícil encontrar uma boa consequência desta pandemia. Talvez uma: ainda não se ouviu a cretinice de que nas crises surgem sempre oportunidades. Um dito que parece patrocinado por quem lucra com as desgraças dos outros e está a borrifar-se para a comunidade.

Fosse eu um furioso otimista e diria que esta crise sanitária e económica teria ao menos servido para nos deixar mais cientes do problema da desigualdade. Para, de uma vez por todas, percebermos o quanto dependemos uns dos outros e do tamanho da injustiça que é termos os mais pobres e vulneráveis a carregar-nos às costas, sendo isso tão claro nestes dias que vamos vivendo.

Não sou, nem nisto nem que no que prevejo venha a seguir. Não tardarão os protestos e não serão os mais pobres a protagonizá-los, nunca são. Virão contra os aumentos de impostos que vão acontecer; o Serviço Nacional de Saúde, que agora idolatramos, será, não tarda, um sorvedouro de recursos e será preciso modificá-lo em função disso; e como diria o ministro das Finanças holandês - que tem mais seguidores portugueses do que se julga -, precisamos de ajustes orçamentais e reformas.

Era capaz de apostar que não é para nos tornarmos um país mais igual e mais justo. Gostava muito de estar enganado.

A nossa sorte com os políticos

A procissão ainda vai no adro, mas há que dizer que os nossos principais políticos têm-se portado de uma maneira exemplar nesta crise. Os líderes, do CDS ao PCP, merecem aplausos e mostraram, até agora, que aquilo que os divide é bem menos importante do que aquilo que os une - há um miserável que até inventou uma patranha para que falem dele, mas não é político, não passa de um oportunista. E, claro, António Costa, que até agora só merece elogios.

Não são só estes momentos que revelam os grandes políticos. O trabalho de continuidade, de pequenos avanços e de lançamento de bases é silencioso mas fundamental para a comunidade. Mas estas alturas são decisivas e definem o carácter de um líder. Um político pode ser mau no tal trabalho de formiga e bom nestas alturas.

Costa é quem carrega o fardo, mas Rui Rio merece uma lembrança. É ele o líder da oposição e podia ter tentado tirar dividendos políticos das falhas do governo - veja-se o exemplo espanhol. Depois porque há quem tente colar nele o labéu de ser uma espécie de ajudante de António Costa desde que foi eleito com o propósito claro de o descredibilizar.

Aliás, se houve campanha que não acalmou com esta crise é a que é feita por alguns media contra Rio. O homem tem muitos defeitos, mas tem mostrado que é um estadista e que está à altura das suas responsabilidades. Portugal tem sorte, nesta situação, de ter este líder da oposição e terá nele, no futuro, e se acontecer, um bom primeiro-ministro.

Não tenho ilusões, as pessoas que estão sempre a criticar os nossos políticos continuarão a sua sanha - a maioria não percebendo que é somente um discurso antidemocracia, outros porque de facto querem acabar com ela.

Temos, tivemos e teremos, como em todo o lado, políticos corruptos e incompetentes, oportunistas, gente que não dignifica a política, a mais nobre das atividades. Mas a verdade é que nos momentos cruciais da nossa democracia temos tido sorte com quem nos representa.

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