Pela primeira vez desde 2018, quando foram reativadas as linhas de comunicação militares entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, o telefonema diário de Seul ficou por atender em Pyongyang. O regime anunciou o corte de comunicações com o "inimigo", numa mensagem vista como uma tentativa de unir os norte-coreanos em tempos de crise económica provocada pelo coronavírus (oficialmente o país não tem casos), mas também como uma indireta aos EUA em vésperas do aniversário da primeira cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un..Oficialmente, a decisão da Coreia do Norte prende-se com a incapacidade do Sul para travar o envio de balões carregados de panfletos com propaganda anti-Pyongyang para o outro lado da fronteira. Estes panfletos, que criticam a ambição nuclear de Kim Jong-un ou denunciam as violações de direitos humanos no país, são obra de ativistas sul-coreanos ou desertores norte-coreanos..Por norma, Seul não trava o envio dos panfletos, considerando que não pode pôr em causa o direito à liberdade de expressão. Mas isso muda quando a tensão aumenta com Pyongyang - que já chegou a disparar contra os balões..Kim Yo-jong, a irmã de Kim Jong-un que durante o misterioso desaparecimento do líder norte-coreano em abril foi apontada como possível sucessora, criticou na semana passada os responsáveis pelos panfletos, apelidando-os de "escória humana". E ameaçou fechar permanentemente o escritório de ligação entre os dois países, assim como anular o acordo militar intercoreano assinado em 2018, com o objetivo de reduzir as tensões..A decisão de cortar comunicações terá sido tomada por Kim Yo-jong e pelo vice-presidente do Partido dos Trabalhadores, Kim Yong-chol.."Canais regulares de comunicação são principalmente necessários durante uma crise e por essa razão a Coreia do Norte corta-os para criar uma atmosfera de risco elevado. É uma jogada conhecida de Pyongyang, mas continua a ser perigosa", escreveu no Twitter Daniel Wertz, do Comité Nacional sobre a Coreia do Norte (uma organização não governamental norte-americana dedicada a melhorar as relações entre os EUA e a Coreia do Norte).."Os norte-coreanos têm estado a tentar encontrar algo que possam usar para mostrar o descontentamento à Coreia do Sul. E agora têm a questão dos panfletos, mas acho que não se pode resolver simplesmente a questão dando resposta aos panfletos", disse à agência AP Kim Dong-yub, do Instituto para os Estudos do Extremo Oriente, em Seul. Na sua opinião, o corte de comunicações é também um sinal da determinação de Pyongyang de não ceder nas negociações sobre o nuclear..Aniversário da cimeira histórica.A Coreia do Sul facilitou os vários encontros entre Trump e Kim, incluindo a cimeira de 12 de junho de 2018, em Singapura. O próprio presidente Moon Jae-in, que investiu muito do seu capital político no reatar das relações entre os dois países tecnicamente ainda em guerra, encontrou-se por três vezes com o líder norte-coreano em 2018..Mas o falhanço da segunda cimeira entre Trump e Kim, a 27 e 28 de fevereiro de 2019, em Hanói, por causa das sanções norte-americanas, levou Pyongyang a virar as costas a Seul. O Norte esperava o reatar dos projetos económicos conjuntos e uma maior pressão por parte do Sul para o levantamento das sanções, que Trump rejeitou sem a cedência completa do regime norte-coreano ao nuclear..A 3 de maio, houve uma troca de tiros entre norte-coreanos e sul-coreanos junto à fronteira, por cima da zona desmilitarizada. Um soldado norte-coreano terá disparado primeiro contra um posto de guarda sul-coreano (foram encontrados quatro marcas no edifício), com Seul a responder com duas rajadas de aviso num total de dez tiros. Não houve feridos ou danos..A decisão do regime de cortar comunicações é um novo revés para Moon, que vê em risco o trabalho político dos últimos anos que lhe garantiu uma maioria absoluta junto com os seus aliados na Assembleia Nacional. Nas eleições de abril, o Partido Democrático conquistou 180 dos 300 lugares no parlamento sul-coreano. Há analistas que consideram por isso que a jogada de Pyongyang seja uma tentativa de pressionar Seul a fazer concessões..Desde a última ronda de conversas entre o Norte e os EUA, que terá ocorrido em outubro, Pyongyang tem aumentado a pressão, fazendo pelo menos onze testes de mísseis e prometendo continuar a desenvolver a energia nuclear. Entretanto, em plena pandemia de coronavírus e numa contagem decrescente para as eleições presidenciais de novembro nos EUA, o presidente Donald Trump tem um discurso centrado na China e não na Coreia do Norte, sem aparente interesse em reativar as negociações..Os EUA já reagiram à decisão do corte de comunicações. "Estamos dececionados com as recentes decisões da Coreia do Norte", disse um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, enfatizando que Washington "sempre apoiou o progresso nas relações intercoreanas".."Pedimos à Coreia do Norte que retome o caminho da diplomacia e da cooperação", acrescentou, indicando que Washington permanece "em estreita coordenação [com Seul, um aliado dos EUA] sobre os esforços para negociar com a Coreia do Norte"..Se as sanções económicas já deixavam a Coreia do Norte com problemas económicos, a pandemia de coronavírus e o fecho das fronteiras com a China, o principal parceiro económico, só veio piorar a situação. Daí que haja quem acredite que a decisão do regime sirva também para mobilizar os norte-coreanos internamente, contra um "inimigo" externo, em tempos de covid-19. Ainda que, oficialmente, o país não conte com nenhum caso..O misterioso desaparecimento e a irmã.No meio de tudo isto, Kim Jong-un esteve quase três semanas desaparecido, levantando rumores de que teria morrido e que a sua irmã lhe teria sucedido à frente do país..Kim desapareceu depois de presidir, a 11 de abril, a uma reunião do Partido dos Trabalhadores para a tomada de medidas no combate à pandemia. Quase dez dias depois, a CNN, citando fontes dos serviços de informação norte-americanos, noticiava que teria sido operado ao coração e estaria em risco de vida. O rumor espalhou-se e houve até quem desse a sua morte..A informação de que o líder norte-coreano teria sido operado no dia 12 foi avançada pelo site sul-coreano Daily NK, que é escrito por desertores. Segundo este, a intervenção deveu-se ao "tabagismo desmedido, obesidade e sobrecarga de trabalho", mas Kim estaria a recuperar em Hyangsan, no interior do país, e que parte da equipa médica já teria voltado à capital..Entretanto, Seul não confirmava os rumores, indicando que o líder norte-coreano não estava morto nem tinha sido operado..Kim Jong-un voltou a ser visto em público a 1 de maio, na inauguração de uma fábrica de fertilizantes nos arredores de Pyongyang, pondo um ponto final nos rumores..O desaparecimento do líder norte-coreano voltou a centrar as atenções na sua irmã, Kim Yo-jong, que está agora também por detrás desta decisão de corte de comunicações - será ela a responsável pelas ligações com a Coreia do Sul..Kim Yo-jong, que terá 31 anos (quatro anos mais nova do que o irmão), aparecia apenas ocasionalmente ao longo dos anos, mas ganhou papel de destaque ao ser nomeada membro suplente do Comité Central do partido em 2017. Mas foi sempre vista como sendo próxima do irmão..Esteve ao lado dele nas cimeiras com Trump e com o presidente chinês, Xi Jinping, sentou-se atrás do vice-presidente Mike Pence quanto representou a Coreia do Norte nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 e foi o primeiro membro da família a visitar Seul desde a guerra, onde entregou uma mensagem pessoal do irmão, convidando o presidente Moon Jae-in para um encontro..Depois do fracasso da segunda cimeira com Trump, foi afastada do Politburo, mas seria reintegrada já em abril deste ano, parecendo ganhar cada vez mais força como número dois do irmão.