Há exatamente quatro anos, no dia 9 de de março de 2016, às 10.14 da manhã, Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse na Assembleia da República. Chegou à cerimónia caminhando pela Calçada da Estrela, sorridente e otimista, e prometeu preferir "os pequenos gestos que aproximam às grandes proclamações que afastam"..Hoje, quando se inicia o último ano do seu mandato, amontoam-se na sua secretária no Palácio de Belém pilhas de argumentos pessimistas: os efeitos a longo prazo do coronavírus (que, aliás, já o colocaram a ele numa situação de isolamento social a que não está habituado), as consequências no turismo - e na economia - e o impacto que terá na apreciação que os portugueses fazem do Serviço Nacional de Saúde. Além de tudo aquilo que, em comparação, parece menor, como as suspeitas sobre a gestão dos clubes de futebol e sobre a transparência do próprio sistema judicial. .De fora também não há boas notícias, do impacto que o Brexit pode ter à forma como a economia alemã parece pressagiar uma nova crise global. E, é claro, o efeito das alterações climáticas. A lista não é exaustiva, mas não deixa adivinhar nenhuma razão para que Marcelo se sinta, como sentia há quatro anos, preparado com uma estratégia para responder aos problemas que intuía..Este é, aliás, um daqueles momentos da história em que as estratégias se esfumam. Marcelo tinha previsto passar boa parte do ano que resta do seu primeiro mandato no exterior, acrescentando-lhe uma dimensão internacional. Isso parece, agora, impossível, dadas as limitações impostas pelos planos de controlo do coronavírus. E não é o único revés previsível nos seus planos..Quando tomou posse explicou: "Temos de cicatrizar feridas destes tão longos anos de sacrifícios, no fragilizar do tecido social, na perda de consensos de regime, na divisão entre hemisférios políticos. Tudo indesejável, precisamente em anos em que urge recriar convergências, redescobrir diálogos, refazer entendimentos, reconstruir razões para mais esperança."."Sobre-exposição" e populismo.E rapidamente o pôs em prática: usou da sua proverbial "proximidade", tirando selfies, comentando com bonomia todos os problemas, apoiando a geringonça (que incluía pela primeira vez numa maioria parlamentar convergente quase um quarto dos eleitores, ainda que fossem de uma área política distante da sua). A crise económica transformou-se em "défice zero", o desemprego deixou de ser a maior preocupação social. Mas Marcelo saberia que as grandes mudanças também escondem enormes estagnações..Hoje, a um ano do fim do seu mandato, não parecem estar criadas "razões para mais esperança". Por isso, há dias, quando falava nas comemorações dos 30 anos do jornal Público, o Presidente deixou um aviso sério ao primeiro-ministro: "Não se pode começar a legislatura com ambiente de fim de ciclo." Nessas palavras, além de pretender caracterizar a atual situação política (com um governo minoritário do PS que faz, como caracterizou Ana Gomes na entrevista ao DN e à TSF, uma "negociação à queijo Limiano, caso a caso"), Marcelo Rebelo de Sousa antecipava também a ocorrência de crises políticas sérias, como a queda do governo. "É óbvio que tem de haver estabilidade e não há sequer condições para estar a pensar em crises", afirmou..A todos os pontos de interrogação que agora se colocam, a um ano de novas eleições, junta-se o crescente impacto mediático do populismo, que Marcelo Rebelo de Sousa identificou, desde o primeiro dia de mandato, como um risco. Para o Presidente, é do "vazio" que se alimenta o populismo, e é com esse perigo que justifica a sua própria "sobre-exposição" mediática. ("É uma sobre-exposição? É... Mas é a única maneira de reagir.", explicou, um dia, num encontro com intelectuais estrangeiros na Fundação Champalimaud)..Segundo o calendário que estipulou, só anunciará a sua recandidatura à Presidência em outubro, escassos três meses antes da eleição. Isso é visto pelos seus apoiantes como uma quase garantia de que será candidato. Que sentido faria anunciar, tão em cima das eleições, que não concorreria? Que hipóteses teriam os seus apoiantes políticos de encontrar uma alternativa, nessa altura?."Eu acho que ele vai ser candidato", antecipa Miguel Poiares Maduro, ex-ministro da Presidência do último governo de Passos Coelho. E, avançando, prevê, a reeleição está garantida quer com os votos do seu próprio espaço político ("embora haja pessoas com dificuldade em aceitar a proximidade que o Presidente teve com o governo") quer com a "neutralidade" provável do PS - isto apesar de haver vozes entre os socialistas a apelar a uma candidatura..O risco de uma crise económica.O problema será o que virá depois. Para Poiares Maduro, a nova "crise da economia global" que pode estar a nascer afetará Portugal e "pode vir a complicar muito o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa". Poiares Maduro fala desta possível crise a partir do ponto de vista de alguém que está em casa, em Florença, onde dá aulas, com a sua universidade fechada e contactos sociais limitados, com a tentativa de controlo do contágio do covid-19, que já infetou mais de 5800 pessoas e matou 233 em Itália..Ora, ainda não é fácil antever os efeitos que uma situação destas terá na política, mesmo em Itália. Explica Poiares Maduro que um surto como este até pode "reforçar a estabilidade e impedir os discursos populistas que tentem instrumentalizar o tema". Por isso, "esta crise pode combater o populismo porque volta a fazer que as pessoas avaliem a importância do conhecimento científico". Mas uma coisa é certa: "Em Itália, esta é a grande questão. Não se fala de mais nada.".Em Portugal, o próprio Marcelo está sem contactos sociais por ter estado em contacto com uma turma de uma das escolas do norte que foram afetadas. Para já não há situação de emergência. Mas uma possível "situação de urgência pode ser favorável ao Presidente, enquanto fator de união dos portugueses, e limitando o discurso de candidaturas com temas fraturantes", defende Poiares Maduro que vê também um risco enorme nos efeitos do covid-19 sobre a política..Sobretudo se todas as limitações preventivas ao crescimento da doença vierem a gerar "uma recessão global", diminuindo o turismo, a produção, a circulação e venda de produtos. A ser assim, a haver crise económica, o principal risco para o Presidente seria o de uma maior polarização política. Isto porque, avalia Poiares Maduro, a eficácia de Marcelo depende da existência de "alguma instabilidade e de algum antagonismo político", mas em doses moderadas. "Nesse contexto, ele aparece como alguém que é capaz de fazer pontes", explica. Se os campos políticos se tornam irredutivelmente antagónicos e a instabilidade cresce, Marcelo deixa de poder ser "a cola" que assegura a negociação..A proximidade pode acabar?.Também João Bonifácio Serra, antigo chefe da Casa Civil do Presidente Jorge Sampaio, encara o covid-19 como "uma situação de grande tensão". Porque "a vida coletiva começa a ser modificada e o quotidiano das pessoas está a ser perturbado". É quase como uma situação típica de "tempo de guerra"..Desde logo, a doença põe em causa o normal funcionamento de um dos pilares do Estado social: o Serviço Nacional de Saúde. "De várias formas", explica João Serra. "No seu funcionamento, abastecimento, no stress dos profissionais." Sobretudo numa altura em que o contexto da crise anterior mudou "de forma extraordinária" a gestão corrente dos serviços públicos. Hoje, qualquer gasto (seja com horas extraordinárias dos profissionais seja com a compra de desinfetante para as mãos) obriga a um processo burocrático demorado, que limita a capacidade de resposta, lembra João Serra..A doença, e a resposta das autoridades portuguesas, acaba por ter um efeito político, que já foi visível, recorda João Serra, numa declaração "pouco feliz" de Marcelo Rebelo de Sousa. No dia 3 de março, o Presidente disse aos jornalistas que queria ter ido ao Porto visitar infetados com o coronavírus, mas que quis evitar, com isso, ter "protagonismo excessivo": "Eu cheguei a pensar nessa deslocação, mas deve ser dada primazia ao governo para que se não diga que o Presidente da República está a ter protagonismo excessivo numa questão que o primeiro-ministro chamou a ele mesmo a nível da coordenação, ao mais alto nível."."Esta disputa é um mau sinal", avalia João Serra. Até porque demonstra que Marcelo está a ter alguma dificuldade em "ajustar a visibilidade pública" da sua ação, quando tem sido muito eficaz a exercer "influência política através do espaço mediático"..Essa é também, para Miguel Poiares Maduro, uma das questões em aberto no futuro próximo: "Como vai o Presidente continuar a sua estratégia de proximidade física com os portugueses numa altura em que essa proximidade será limitada?".A relação com o PS.A resposta que Marcelo dará à pergunta ainda não é conhecida. Para já está num pouco confortável isolamento social autoinfligido. Mas esse é o seu grande ponto forte, continua João Serra: "Ele é, sempre foi e quer ser uma peça central numa altura de grandes dificuldades." Por isso, João Serra estranhou também as referências feitas por Marcelo, no discurso da semana passada, na cerimónia do Público, à sua limitação constitucional - entre maio e outubro - de dissolver o Parlamento..As relações de Marcelo com o PS, e o próprio cenário político atual, não parecem ser dramáticas. Pelo contrário. Miguel Poiares Maduro caracteriza a presidência de Marcelo como não sendo "à esquerda nem à direita"..O presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, considerou Marcelo "um grande Presidente" e garantiu que se as eleições fossem amanhã, "não teria dúvidas em quem votaria". O primeiro-ministro, António Costa, avaliou que uma eventual não recandidatura de Marcelo desiludiria milhões de portugueses: "Eu diria, se me fosse permitido ser por dez segundos analista político, que há 99% de possibilidades de ele se candidatar. Além do mais, seria incompreensível para 80% dos portugueses que o apoiam verem-se frustrados por não o terem.".Essas declarações parecem indicar que, em janeiro de 2021, Marcelo pode ser, se quiser, o candidato oficial do PSD e do CDS, e que contará com uma lisonjeira "neutralidade" do PS. Mas João Bonifácio Serra acha "difícil" que não surja uma candidatura na área do PS. "Não vejo nada de perturbador para Marcelo se surgir uma candidata como Ana Gomes. Ela pensa e diz aquilo que pensa. É uma lutadora e uma ativista.".Ana Gomes tem sido apoiada por vários quadrantes à esquerda, mas repete que não é candidata. "Estou farta de dizer que não penso candidatar-me", lamentou, na entrevista que deu ao DN e à TSF. Entre elogios a Marcelo, Ana Gomes explicou que o Partido Socialista deveria ter um candidato próprio às eleições presidenciais: "Acho que isso só dignifica o próprio debate presidencial, independentemente de quem vier a ser eleito. Não tenho dúvidas nenhumas de que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa vai recandidatar-se e que ganhará. Mas considero que este é um momento de debate político.".No cenário atual, em que Marcelo contará com candidatos dos partidos à esquerda do PS e da direita radical, uma vez que André Ventura já confirmou candidatura, se vier a surgir um adversário na área do PS essa será a oportunidade para que o Presidente se situe no seu espaço político próprio, mostrando as virtudes da moderação e procurando defender o centro-direita da ameaça que o populismo lhe traz..Até lá, esse cenário pode mudar. E até para Marcelo Rebelo de Sousa, por estes dias é muito difícil construir uma estratégia a longo prazo.