Não há muitas capas de livros que nos convoquem para o seu interior como a capa da edição portuguesa de Ozu, a monografia de Donald Richie finalmente publicada entre nós, para regozijo de muitos cinéfilos. E o curioso, desde logo, é que esta capa funciona não apenas como uma referência para quem conhece a obra do realizador de Viagem a Tóquio, mas igualmente para quem de alguma maneira se interessa pela cultura japonesa. Ao simular a textura do tecido sobre o qual correm os créditos de abertura nos filmes do cineasta nipónico, a capa tem, por um lado, o simbolismo do convite ao espectador e, por outro, um bom gosto oriental que não deixa indiferente o leitor mais distraído que passe os olhos pelas novidades literárias..Apresentado há dias na Cinemateca, o livro que nos chega traduzido por António Nuno Júnior, com um esmerado trabalho editorial da The Stone and The Plot, é um objeto raro na paisagem da literatura de cinema em Portugal. A começar pelo facto de se tratar de uma obra de culto (publicada em 1974) sobre um realizador muito apreciado por cá, cujos filmes de quando em vez regressam ao grande ecrã. Ainda no último ano, na altura do confinamento, e perante a impossibilidade da sala escura, a distribuidora Medeia Filmes disponibilizou online três títulos do cineasta - A Flor do Equinócio, O Fim do Outono e Bom Dia -, consciente de que qualquer espectador encontraria neles uma certa serenidade doméstica adequada ao contexto. Ou, por outras palavras, encontraria neles "o verdadeiro gosto japonês", como refere Donald Richie, de resto, um americano fascinado com o Japão, que se dedicou aos escritos sobre a cultura, a estética e o cinema deste país..Com efeito, se Akira Kurosawa é considerado o mais ocidental dos cineastas japoneses, Yasujiro Ozu (1903-1963) é visto pelos seus conterrâneos como aquele que melhor transmitiu a autenticidade japonesa, em parte inscrita numa atitude cerimoniosa, a enryo (etiqueta na forma de estar quotidiana que define uma postura de reserva e humildade), a partir da qual se desenha o trato das personagens. Kurosawa, que gostava muito de Ozu, era, contudo, um antagonista férreo dessa formalidade presente no seu cinema, que inclusive dizia não corresponder ao ser humano divertido que ele era. Como escreve Richie sobre o ambiente no plateau dos filmes: "Havia diversas cortesias, anedotas, e por vezes monólogos cómicos por parte do próprio Ozu, para alegrar a sua festa. Criava-se uma atmosfera tão agradável e relaxada, tão diferente dos respeitosos e mesmo desesperados silêncios observados no plateau de outros realizadores, tanto orientais como ocidentais, que os atores estavam geralmente de acordo quanto aos momentos agradáveis que tinham passado.".A hesitação contida neste "geralmente" tem só que ver com o facto de, após esse clima de festa, o regresso ao trabalho significar uma disciplina esgotante que fazia esquecer os momentos leves. O próprio Richie fez uma visita à rodagem de O Fim do Outono (1960) e relata-a no livro: "Sentámo-nos e rimos, e ele contou histórias enquanto a iluminação estava a ser devidamente preparada. Depois disso, Ozu ainda contou umas quantas anedotas, mas à medida que ia trabalhando com os seus atores, uma nova atmosfera ia surgindo." Porém, Richie não presenciou nada parecido com as histórias à volta da rígida e escrupulosa direção de atores: "Não fui testemunha de nenhum dos célebres episódios de Ozu a obrigar um ator a repetir o seu diálogo dúzias de vezes, mas reparei que, como realizador, era alguém invulgarmente cauteloso.".Os filmes de Ozu, sobretudo desde o magnífico Primavera Tardia (1949) aos da fase a cores, que começa com A Flor do Equinócio (1958) e vai até ao derradeiro O Gosto do Saké (1962), denotam essa cautela singular de quem pensava o cinema com pressupostos de arquitetura - daí a reconhecível geometria dos enquadramentos - que acolhem a vida das personagens, sem sobressaltos narrativos. Ou seja, a vida como ela é, "dececionante", captada através do curso natural das relações familiares que expõem a beleza e a fragilidade humanas nos momentos de mudança e aceitação. Por isso o chamado drama doméstico será o género que melhor identifica o seu cinema, pela recatada poesia formal do espaço da casa e uso de naturezas-mortas (chaleiras, jarras, flores), numa valorização absoluta da unidade do plano, ou como diz Richie, uma "paixão pela composição"..A prosa do autor aprofunda teoricamente estes aspetos, organizando a estrutura do livro tal como se seguisse o método de Ozu, para terminar com um capítulo biográfico. E nas diversas descrições que faz de cenas e particularidades de filmes, aqui muitas vezes acompanhadas de imagens na página, há um longo parágrafo dedicado a Bom Dia (1959) - a "comédia doméstica" com dois irmãos em greve de silêncio para os pais lhes comprarem uma televisão - que faz uma das reflexões mais vitais sobre o cinema do mestre japonês a partir dos famosos episódios de... flatulência: "Aquilo que é mais importante nestes momentos dos filmes de Ozu é que eles servem para sugerir não apenas o 'humano'", mas também o 'simplesmente humano'." Eis a vida como ela é..Donald Richie Editora: The Stone anda the Plot Tradução: António Nuno Júnior 304 páginas, 20 euros