França cedeu mas não acalmou coletes amarelos. E agora, Macron?
Depois do "hiperpresidente" Nicolas Sarkozy, que queria ter mão em tudo, e do "presidente normal" François Hollande, que queria ser a antítese do antecessor, Emmanuel Macron procurava ser um presidente "jupiteriano", numa referência a Júpiter, o rei dos deuses na mitologia romana. Alguém que estaria acima das politiquices (foi uma rejeição aos partidos tradicionais que o impulsionou para a vitória e para uma maioria absoluta na Assembleia Nacional) e que empreenderia reformas ambiciosas, sem ceder à pressão das ruas.
Mas, 18 meses depois de ter entrado no Palácio do Eliseu, Júpiter desceu à terra , fragilizado pelos protestos dos coletes amarelos que começaram por querer o fim do aumento dos combustíveis mas não se ficaram por aí. Macron é acusado de ser o "presidente dos ricos", depois de ter acabado com o imposto sobre as grandes fortunas, de fazer a reforma do sistema de pensões e cortar nos gastos públicos. Os coletes amarelos já não querem só que o governo se comprometa a não aumentar as taxas sobre os combustíveis, querem também melhores salários e menos precariedade no emprego.
As ruas de Paris e de várias outras cidades francesas voltaram ontem a ser palco de confrontos entre a polícia e os manifestantes de coletes amarelos - aqueles que é obrigatório ter nos carros para usar em caso de avaria ou acidente. Depois das cenas de vandalismo do sábado anterior, que deixaram marcas no Arco do Triunfo e prejudicaram a imagem de França (vários países, como Portugal, apelaram a evitar deslocações desnecessárias a Paris), a capital foi blindada.
Segundo os números oficias, cerca de 125 mil pessoas manifestaram-se ontem em toda a França, das quais oito mil em Paris. Eram tantas quantos os polícias destacados para a capital, num total de 89 mil em todo o país para fazer face ao "Ato IV" dos protestos - o primeiro ato foi a 17 de novembro e reuniu 300 mil manifestantes. A polícia usou canhões de água e gás lacrimogéneo para travar os atos de vandalismo (carros foram incendiados e vidros das montras de lojas e restaurantes partidos) e dispersar os manifestantes. Até ao início da noite, já tinham sido detidas 1385 pessoas (920 em Paris) e havia 118 feridos. Houve confrontos na capital, mas também em Lyon, Marselha e Toulouse. E havia receio de que a situação podia piorar com o avançar da noite.
Apesar de ter chegado ao Eliseu com a promessa de nunca ceder, Macron foi obrigado a fazê-lo nesta semana, cancelando o aumento na taxa sobre os combustíveis que deveria acontecer em 2019 (uma das medidas do seu plano ecológico). Mas não conseguiu acabar com os protestos. Criou contudo divisão entre os manifestantes, tendo havido um grupo - autointitulado coletes amarelos livres - que defendeu a suspensão dos protestos para permitir o diálogo.
Mas outro grupo apressou-se a acrescentar novas reivindicações à lista, deixando claro que há muito que as manifestações não se prendem só com o preço dos combustíveis. Expressam o descontentamento crescente dos franceses - nomeadamente da França rural - com a política do presidente.
O líder da Assembleia Nacional, Richard Ferrand, anunciou que Macron vai quebrar o silêncio e falar no início desta semana. Não se sabe quando, nem em que formato, apenas que o presidente não quis falar antes de sábado "para não lançar mais achas para a fogueira" e complicar mais a situação. "Ele considera que não é o momento. Ele quer controlar o timing das suas intervenções", disse um membro da sua equipa ao Le Parisien, sob anonimato, indicando que a ideia é manter "o efeito surpresa". Resta saber o que dirá e se isso será suficiente para evitar novos protestos, no próximo sábado.
"Para ele, este não é um episódio como outro qualquer. É uma crise com raízes profundas, devido ao grau de mal-estar expresso. É também uma crise moral. É uma loucura ter de apelar à calma, quando isso devia ter sido um reflexo democrático da parte de todos os partidos", disse uma fonte do Eliseu ao jornal francês Le Parisien.
Macron tem por isso duas hipóteses. Por um lado pode fazer mais cedências, ficando ainda mais fragilizado e à mercê dos próximos que queiram sair à rua. Por outro, pode manter a posição de força, reiterando a necessidade de dialogar, o que poderá forçar uma maior divisão entre os coletes amarelos (que nunca foram um grupo homogéneo).
O problema é que do outro lado não tem um interlocutor válido: o movimento nasceu e cresceu nas redes sociais, sem líderes claros. Além disso, escapou das mãos daqueles que lançaram os primeiros apelos aos protestos, com denúncias de infiltrações por parte de membros da extrema-direita e da extrema-esquerda, mais interessados em acabar com o sistema e em fazer derrubar o governo. O movimento "criou um monstro", disse o ministro do Interior, Christophe Castaner, na sexta-feira.
Macron pode ainda jogar com a expectativa de que os protestos que começaram há quase um mês percam força, apostando que o apoio aos coletes amarelos comece a esmorecer na opinião pública à medida que se repitam as cenas de violência e de vandalismo. Ainda assim, pode ser um risco: 66% dos franceses inquiridos por uma sondagem Ifop para a Sud Radio, na última semana, disseram apoiar o movimento. Já a popularidade do presidente está no valor mais baixo de sempre: 18%.
Nas ruas, os manifestantes gritam "Macron, demissão". Mas quem poderá cair é o primeiro-ministro, Édouard Philippe, cuja popularidade é ligeiramente superior (21%) depois de terem surgido sinais de divisões entre ambos. O chefe do governo defendia a suspensão do aumento da taxa, mas foi desautorizado umas horas depois pelo presidente, que anunciou o cancelamento.
Philippe anunciou uma suspensão de seis meses do aumento da taxa na quarta-feira às 15.00, na Assembleia Nacional. O tempo seria usado para refletir numa forma mais equitativa de introduzir essa taxa (que visa igualar o preço do gasóleo ao da gasolina), com Philippe a dizer que se isso não fosse possível não seria restabelecido o imposto.
Mas o ocupante do Eliseu foi mais longe, menos de cinco horas depois, anulando o aumento da taxa. Nos estúdios da BFM-TV, o ministro da Transição Ecológica, François de Rugy, explicou: "Assim, não há trafulhice. O presidente, estive a falar com ele há poucos minutos ao telefone, disse-me: "As pessoas tiveram a impressão de que havia uma trafulhice, que lhes dizíamos que era uma suspensão mas que voltaria depois.""
Por tudo isto, há quem já fale de um mal-estar entre presidente e primeiro-ministro, que poderá levar ao afastamento do ocupante do Palácio do Matignon. Ele nega-o. "A missão é alcançar os objetivos que foram fixados pelo presidente da República. Faço-o com o apoio da maioria e com a confiança do presidente. E o que me importa", afirmou Philippe à TF1. Já o Eliseu garante à AFP que existe "harmonia perfeita" entre ambos.