"Quase 100% do desmatamento no Brasil é criminoso", diz cientista
Em plena onda inédita de calor no país e com os incêndios no Pantanal e as queimadas na Amazónia a baterem recordes em 2020, o pesquisador Carlos Nobre diz que, no governo Bolsonaro, "o mundo do crime ambiental sente-se muito mais empoderado".

© Carl de Souza/AFP
O Instituto Nacional de Meteorologia do Brasil (INMET) alertou na última terça-feira (6 de outubro) para o risco de morte por hipertermia no país: em seis estados e no Distrito Federal há registo de temperaturas cinco graus - nalguns casos superando, dessa forma, os 46 - acima da média ao longo de, no mínimo, cinco dias. Milhões de brasileiros, depois de meses a sentirem medo da covid-19, sentem agora medo da onda de calor.
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Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), as queimadas no Pantanal, savana com 250 mil quilómetros quadrados de extensão na região centro oeste do Brasil, aumentaram 210% em 2020 em relação a 2019. Maior planície alagada do planeta, a região já perdeu três milhões de hectares nos fogos, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais. O rio Paraguai, que banha a região, sofre a pior seca em 60 anos, com médias de precipitação 40% inferiores ao normal.
Diz ainda o INPE que o desmatamento na Amazónia aumentou 34% em 2020, depois de 2019 já ter sido ano de alta - foram derrubados mais de 9,2 km2 de floresta, o equivalente a 92 vezes a área da cidade de Lisboa.
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Das (pelo menos) dez mentiras detetadas pelas duas principais agências de fact checking brasileiras de Jair Bolsonaro em recente discurso na Assembleia Geral da ONU, quatro diziam respeito à política ambiental.
Razões suficientes para ouvir o cientista Carlos Nobre, 69 anos, especializado em meio ambiente e em questões voltadas para o aquecimento global, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e doutor em Meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
"Ponto de não retorno na Amazónia"
Segundo ele, "a Amazónia pode estar perto de um ponto de não retorno se o desmatamento exceder 20% a 25%". "Se chegar a isso, grande parte da floresta desaparecerá de forma irreversível. Hoje, o patamar está em 17%", afirmou em entrevista dada à Associação de Correspondentes Internacionais do estado de São Paulo, de que o DN faz parte.
Noutra circunstância da conversa lembrou que "boa parte da Amazónia deve virar um Cerrado [outro bioma brasileiro, também chamado de savana, muito mais seco do que a Amazónia] degradado. Se o total da área desmatada ultrapassar os 20%, 25%, sem água, ela vai se savanizar para o norte cada vez mais. E em 30 a 50 anos estaria 70% savanizada".
Nobre defende uma espécie de Brazil Green Deal após a pandemia. "É necessário um novo paradigma de desenvolvimento para a Amazónia", disse o cientista, que, atualmente, está à frente do Projeto Amazónia 4.0, uma ideia que visa "o desenvolvimento sustentável para a Amazónia baseado na introdução de uma bioeconomia inovadora, unindo a sociobiodiversidade com modernas tecnologias", ou seja, ser uma terceira via no debate, de décadas, entre a visão de reservar extensões da floresta para conservação da biodiversidade e a do desenvolvimento baseado na exploração intensiva dos recursos naturais, através de agropecuária, energia e mineração.
Explica que o total de áreas destinadas à agricultura vem diminuindo nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e mesmo na China, o maior produtor de alimentos do mundo. Com a agricultura moderna, mais verticalizada e localizada ao redor das cidades, o Brasil cresceria inclusive economicamente. "Produziremos e exportaremos muito mais em uma área bem menor [...] A maior riqueza é a biodiversidade. Esse potencial existe e podemos caminhar nessa direção se desejarmos."
"Quase 100% do desmatamento é de origem humana e quase 100% desse desmatamento de origem humana é criminoso", acrescentou. "Os incêndios de causas naturais ocorrem normalmente na transição da estação seca para a estação chuvosa, que no Pantanal é entre outubro e novembro e na Amazónia é entre setembro e outubro. Então, tudo que nós vimos desde julho são praticamente só incêndios de origem humana."
"Quem desmata são os latifundiários"
O meteorologista sublinha que "mapeamentos bastante rigorosos, feitos em 2020, tanto pelo INPE quanto pela [agência espacial norte-americana] NASA, mostram que mais de 50% da área queimada na Amazónia é mata derrubada. É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária. E quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feito por grandes propriedades, não é o pequeno agricultor, o índio ou o caboclo", destaca, contrariando uma das frases mais emblemáticas do discurso de Bolsonaro no final de setembro na ONU.
"As frases de Bolsonaro não são acompanhadas pelo conhecimento científico, pelas imagens de satélite, pelos estudos de campo", prosseguiu o cientista antes de negar a narrativa presidencial de que existe uma campanha internacional de desinformação contra o Brasil. "Não existe essa campanha. Os satélites não mentem. Eles veem fogo na Califórnia, no Pantanal, no verão passado viram o maior incêndio da história da Austrália. Não é uma campanha, não."
"O Brasil teve uma ação positiva entre 2005 e 2014 contra o desmatamento da Amazónia graças a uma atuação muito efetiva das polícias, do IBAMA [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente] e de órgãos estaduais que aumentou muito o risco dos criminosos ambientais. Durante esse período, o desmatamento caiu de mais de 20 000 km2 para menos de 5000 km2 por ano", assinala Nobre.
"Agora Bolsonaro fala em tolerância zero contra crimes ambientais mas isso não pode ser só uma frase, um papel, é algo que implica uma ação nacional, até internacional, contra quem financia os crimes ambientais. E quem os financia não anda de motosserra em punho a derrubar árvores ou de fósforo na mão a gerar incêndios..."
"Por isso, agora o mundo do crime ambiental sente-se muito empoderado... Se ele fala em tolerância zero com o crime ambiental e o crime ambiental responde por quase 100% do desmatamento e das queimadas, tem de ser cobrado por isso."
"Muitos bandidos colocam fogo em áreas de proteção, em florestas, para abrir aquelas áreas para "grilagem" [tomar posse ilegalmente] de terras ou para utilizá-las numa prática agropecuária atrasada", continua.
"Aquecimento global está rápido de mais"
O ministro da área, o criticado Ricardo Salles, é para Nobre e outros cientistas da área ambiental um ponto fora da curva na história do Brasil. "Até na ditadura militar, o ministro do Ambiente sempre foi alguém ligado à área do ambiente, depois tivemos governos das mais diversas tendências ideológicas e sucedeu o mesmo, como há ambientalistas que apoiam Bolsonaro, se ele procurasse entre esses apoiantes, certamente encontraria alguém que defenda a valorização ambiental..."
A relação das queimadas e do desmatamento com a onda de calor sufocante no Brasil existe - e existirá sobretudo a médio e longo prazo. Carlos Nobre, entretanto, atribui o tempo quente "àquilo que no jargão dos meteorologistas de chama "bloqueio atmosférico", que é o que impede a chegada de frentes frias".
A propósito do aquecimento global, uma das áreas a que o cientista mais se dedica, "está tudo a acontecer rápido de mais". "Há uns 20 anos, se nos perguntavam quando se veria o Atlântico Norte mais quente, secas mais frequentes, estações chuvosas mais curtas e outros fatores, responderíamos lá para 2030, 2040... Estamos em 2020 e já se notam os efeitos."
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