Jonathan Powell foi chefe de gabinete de Tony Blair durante a década deste como primeiro-ministro britânico. E esteve associado como negociador-chefe do Processo de Paz na Irlanda do Norte ao Acordo de Sexta-feira Santa de 1998, um dos grandes êxitos do político trabalhista. Antes foi diplomata, com uma colocação em Portugal no início da carreira. Esteve nesta semana em Lisboa para uma mesa-redonda organizada pelo Instituto Diplomático dedicada à discussão do Brexit..Como antigo negociador chefe para o Acordo de Paz de Sexta-feira Santa na Irlanda do Norte, vê o Brexit, com o possível retorno da fronteira física entre as duas Irlandas, como perigoso? Sim. E é perigoso pelas seguintes razões: o acordo de paz é baseado na identidade, em que as pessoas que são católicas e que vivem na Irlanda do Norte se podem sentir irlandesas. Isso foi conseguido através de uma fronteira aberta. Hoje a fronteira não existe. Pode conduzir-se de um lado para o outro e vice-versa, viver na Irlanda do Norte e ter um passaporte irlandês e nunca ter tido um passaporte britânico e ir apanhar um avião a Dublin. Assim que se reinstalar uma fronteira física, em consequência do Brexit, reabre-se essa questão política e já temos uma crise política na Irlanda do Norte, pois as instituições estão em aberto há ano e meio. Não teremos instituições a funcionar de novo enquanto a ameaça do Brexit não for removida. Assim, é uma ameaça política. É também uma ameaça em termos de segurança. Como já disse o chefe da polícia da Irlanda do Norte, se se reinstalar uma fronteira, assim que se colocar uma câmara de videovigilância alguém irá disparar contra ela. Então terá de haver um polícia a defender a câmara e alguém disparará contra o polícia. E então o exército terá de vir proteger o polícia e assim regressamos ao ponto de partida, ao que havia antes do acordo de 1998. As últimas três campanhas do IRA começaram todas em torno da fronteira. Assim se se reinstalar a fronteira teremos um pesadelo em termos de segurança. E uma crise política..Receia então que possa haver um efetivo retorno da violência por parte de antigos militantes do IRA e também das milícias protestantes? Não receio tanto as milícias, pois só reagirão se se sentirem ameaçadas pela forma como evoluir a Irlanda do Norte. O risco são os IRA, grupos como este que matou agora uma jornalista [Lyra McKee] em Derry e também colocou uma bomba. Não são muito representativos, não têm verdadeiro apoio político, não são o Sinn Féin, que tem, sim, grande apoio político, mas podem ser um problema e assim que começarem a matar pessoas teremos uma escalada, com mais mortes, repressão, e mais apoio para esses grupos. Mas, como já disse, a maior ameaça é política, não de segurança. É pormos em risco o Acordo de Sexta-feira Santa e no fim deitarmos fora tudo o que de bom foi conseguido nestes últimos 20 anos..Quando, juntamente com o primeiro-ministro Tony Blair, negociou o Acordo de Sexta-feira Santa, a União Europeia e a política de livre circulação de pessoas e bens foi uma ajuda para resolver o problema irlandês. Durante a campanha para o referendo de 2016 que culminou com a vitória do Brexit, houve quem alertasse para os riscos específicos para a ilha? Sim, houve. John Major, antigo primeiro-ministro conservador, e Tony Blair foram à Irlanda do Norte durante a campanha do Brexit exatamente para falarem destes riscos, do que poderia acontecer. Porém, Theresa Villiers, que era a secretária para a Irlanda do Norte na época, uma conservadora eurocética, desmentiu-os, dizendo que era disparatado o que eles estavam a dizer, que com as novas tecnologias não havia razão para preocupação com o tema da fronteira. Assim, dois antigos primeiros-ministros fizeram o alerta, mas ninguém lhes deu atenção. Os brexiteers limitaram-se a repetir que tudo se resolveria com tecnologia. E a razão por que não há uma solução tecnológica na Irlanda é que ela não existe nem funciona em parte nenhuma do mundo, se não porque persistiriam as fronteiras físicas, as barreiras?.Imagina possível um acordo final sobre o Brexit entre o Reino Unido e a União Europeia sem o chamado backstop para a Irlanda? Ou algo do género terá sempre de estar incluído? Espero que a União Europeia continue a insistir no backstop, pois sem ele não podemos ter certeza de parar o regresso de uma fronteira dura na Irlanda do Norte. Não seria justo que a União Europeia abandonasse a Irlanda ou abandonasse a paz na Irlanda, que foi sempre apoiada e recebeu significativa ajuda económica da União Europeia..As suas esperanças de triunfo do bom senso nessa matéria recaem mais na União Europeia do que no governo britânico? Bem, para crédito de Theresa May, a até agora primeira-ministra sempre insistiu no backstop. Não deixou para trás a Irlanda do Norte em busca de apoios para a sua proposta de acordo de saída. Mas receio que com a chegada de um novo líder conservador a tentação seja esquecer o backstop por uma questão de facilitismo. Não acredito, porém, que a União Europeia não insista no backstop ou numa solução equivalente, afinal se todo o Reino Unido permanecer no mercado único e na união aduaneira não precisamos de um backstop. Este é exigido na premissa de o resto do Reino Unido deixar estas duas coisas..De que forma todo este processo do Brexit tem afetado o comportamento político das duas comunidades na Irlanda do Norte? Está mudar a mentalidade de protestantes e católicos? Uma maioria na Irlanda do Norte votou contra o Brexit. Uma maioria maior do que a comunidade católica, o que quer dizer que houve também na população protestante quem votasse contra o Brexit. E nas recentes eleições europeias, o partido Aliança, que é contra o Brexit, ganhou um dos três lugares, a primeira vez que tal acontece. O que significa que claramente as opiniões estão a mudar na Irlanda do Norte. Um dos pontos interessantes é que na Irlanda do Norte a separação do resto da ilha depende do consentimento da população. Tradicionalmente esse consentimento existe porque há mais protestantes do que católicos, mas a diferença está a atenuar-se e cada vez mais nos aproximamos dos 50%/50%. O que trava uma maioria de vir a ser a favor da integração na República da Irlanda é que um terço dos católicos querem permanecer no Reino Unido. Mas esse passo tem vindo a diminuir e as sondagens dizem que baixou de 30% dos católicos para 10%. Ou seja, há gente a querer agora a união com a Irlanda por causa do Brexit. Aproximamo-nos assim da situação de termos um voto de 50%/50% em relação ao futuro da Irlanda do Norte e isso trará tensão renovada, basta ver como um referendo decidido por 52%/48% tem trazido tanta tensão ao Reino Unido. Se chegarmos ao ponto de uma ligeira maioria a favor da unificação da Irlanda vamos ter problemas muito sérios..O Brexit foi proposto em nome do regresso de um grande Reino Unido, sem os constrangimentos da União Europeia. Mas com o possível regresso dos problemas à Irlanda do Norte, assim como uma eventual segunda tentativa da Escócia de referendar a independência, o Brexit pode acabar por criar sim um pequeno Reino Unido. É realista este cenário? Sim, e o verdadeiro perigo é que o Brexit acontecendo, sobretudo nas presentes condições, aumente as hipóteses de um referendo independentista na Escócia ser bem-sucedido. Podemos ver a Escócia e o SNP já a manobrar nessa direção, vão escolher o momento para pedirem um referendo e tentarem a sua oportunidade. E uma das razões pelas quais as pessoas votaram contra a independência no referendo de 2014 foi por a Escócia não poder permanecer na União Europeia. Se a Escócia saísse do Reino Unido não poderia permanecer na União Europeia. Agora é claro que se o Reino Unido, a Inglaterra, sair, a Escócia pode ficar na União Europeia. A Espanha já deixou claro que não objetará. Assim, esse desincentivo para deixar o Reino Unido desaparece. E muitos escoceses valorizam bastante a relação com a União Europeia. Assim, não é certo que um novo referendo na Escócia aconteça, não é certo que se acontecer a independência ganhe, mas há um verdadeiro perigo que isso aconteça. Assim, a consequência paradoxal de deixar a União Europeia seria destruir o Reino Unido ao mesmo tempo..May demitiu-se. Tem uma avaliação positiva do esforço da ex-primeira-ministra para gerir um Brexit que não desejou? É difícil não ser simpático com alguém que viveu tempos tão duros. E viu-se isso quando se desfez em lágrimas à porta do n.º 10 de Downing Street. Mas penso que foi ela a autora de vários erros e de muitos dos seus próprios problemas. Se ela tivesse falado mais claramente do assunto desde o início, se não tivesse logo ativado o artigo 50.º, se tivesse negociado a posição do Reino Unido antes de fazer a abordagem à União Europeia, poderia ter sido diferente. Sim, sinto pena dela, mas creio que foi responsável por muitas das coisas más que aconteceram durante as negociações do Brexit, mesmo que se possa dizer que lidar com um partido tão dividido é duro..Quando quer responsabilizar alguém pela situação atual pensa também em David Cameron, Nigel Farage e Boris Johnson? Há outros que são responsáveis também, mas David Cameron é muito culpável por ter convocado um referendo quando não tinha de o fazer. Foi tudo para gestão do partido, para manter a bancada parlamentar satisfeita, mas não a pensar no país. E depois geriu muito mal a campanha do Brexit, pois podia ter envolvido mais gente na defesa da permanência. Theresa May, claro, é também muito responsável pelo que fez quando sucedeu a Cameron e também todos aqueles que disseram mentiras e mais mentiras como Nigel Farage, Boris Johnson e Michael Gove, agora candidato a suceder a May, igualmente. Nalgum momento serão chamados a prestar contas..E Jeremy Corbyn? Não fez campanha pela manutenção. Foi terrível o referendo surgir num momento em que o Partido Trabalhista tem um líder eurocético? Corbyn é um eurocético. Ele vê a União Europeia como uma conspiração de patrões e acredita que vai acabar com isso com medidas que quer aplicar. Sim, é contra a União Europeia, mas está a tentar um equilíbrio nos trabalhistas entre o lado que quer o Brexit e o lado que não quer. Entre os deputados, a maioria é por ficar na União Europeia, mas há um número significativo de votantes trabalhistas, sobretudo nos círculos eleitorais operários, que são pelo Brexit. Ele tenta evitar o choque entre esses brexiteers nas cidades médias e a classe média urbana das grandes cidades, que é pelo remain. Mas ficar à defesa é desconfortável e às vezes é preciso arriscar, dizendo se é ou não a favor de um novo referendo..Não é certo que Boris Johnson venha a ser o próximo líder conservador, pois o partido tende a deixar cair os favoritos, mas imaginando-o primeiro-ministro, acha-o capaz de encontrar uma solução imaginativa para todo este impasse? Como diz, não é certo que Boris Johnson chegue a líder, mas caso o consiga, uma das coisas que mostrou ao longo da vida é que é muito flexível e capaz de mudar de posição muito rapidamente. Antes tinha dois discursos escritos nos bolsos do casaco e acabou por decidir ser brexiteer. Por isso seria fácil mudar de novo. O problema para ele é que depois de se ter dividido o país assim tanto, se trair o lado que escolheu pagará caro. E ele não gosta de ser impopular, não suporta ter as pessoas contra ele. Mas sim, é capaz de surpreender..Se houver hipótese de novo referendo vê alguém no Reino Unido capaz de liderar a campanha do remain? Esse é o grande problema. Os dois partidos estão divididos e liderados porbrexiteers, seja Corbyn e Boris Johnson ou Corbyn e Gove. Assim, quem poderá lidar? Talvez desta vez não queiramos um político, dado o sentimento antipolíticos. Talvez alguém do mundo empresarial. Mas não faço ideia. É importante resolvê-lo antes de tentar um novo referendo.